Marina Manda Lembranças A morte entrou comigo no elevador. Eu tranquila, descendo do meu apartamento rumo à feira, e no 14º andar a po...
Marina Manda Lembranças
Ouço, mas posso estar equivocada porque as palavras vêm através de uma garganta embargada, que houve um desastre, qualquer coisa desse tipo, súbita, como se há pouco tivesse chegado a notícia. O jovem soluça.
Tão jovem e delgado, branco e fino como uma bétula. Sempre, quando chega da escola e pára ao meu lado à espera do elevador, ou quando subimos juntos ou o encontro entrando no prédio, sinto-o cheio de vigor, como se a vitalidade transbordasse além dos limites do seu corpo ainda em formação. E sempre penso que está com fome, fome de alimentos e de fatos, de objetos, de pessoas, aquela fome onívora e ilimitada que chamamos crescimento.
Não hoje, porém. Hoje uma notícia bateu à sua porta, e trazia um corvo na gaiola. O pai, evidentemente, já havia encontrado antes com a morte. Fala dela compassadamente, como se fala de quem se conhece. Diz que o irmão era muito querido, e o diz com pleno amor. É adulto, aprendeu a sofrer.
O jovem nada diz. Pela idade e pela atitude, parece provável que nunca antes tenha vivenciado a perda. A morte talvez sim, há sempre a possibilidade de um avô ou avó ter ido à frente. Mas a partida de um velho, por mais amado que seja, está na ordem natural das coisas, é uma separação para a qual tudo nos prepara, a conversa dos pais, os livros infantis, um sem fim de narrativas e dezenas de clichês. E a morte de uma pessoa mais velha não tem nada a ver com os mais jovens, não os contamina.
Diferente terá sido para o adolescente do elevador a morte súbita de um tio querido. Um tio é um cúmplice e um desdobramento do pai, e como tal torna-se perigosamente próximo. Próximo de idade e próximo de DNA. Um tio é parte de nós. E se ele morre de repente, sem que isso jamais tenha nos parecido possível ou tenha aflorado nosso pensamento, é a possibilidade da nossa própria morte que visualizamos, a ruptura entre o tudo e o nada.
Saberá o rapaz ainda tão menino, com sua fome e seu ímpeto de vida, o que é a falta? Saberá como é continuar uma relação que a morte interrompeu mas não cristalizou? O ser querido que morre parte o fio do seu próprio tempo, mas nós, que seguimos estrada, continuamos dialogando com ele na memória, procuramos seu rosto nos retratos e nos sonhos, refazemos o passado e imaginamos como seria o presente. A ausência não se elimina, é um espaço que preenchemos de incompletude.
O jovem soluça em seco no elevador. Não abaixa a cabeça, quase soubesse que não adianta esse mínimo recolhimento. Terá que enfrentar. Ele pensa que terá que enfrentar porque é homem. Não sabe ainda que testosterona não tem nada a ver com sofrimento. Terá, sim, que enfrentar, mas porque está crescendo, e porque a vida, inelutavelmente, nos põe frente a frente com a morte.