Marina Manda Lembranças E sther é uma menina de 11 anos. Foi transformada em personagem, mas é real e, na vida real conversa co...
Marina Manda Lembranças
Esta semana, enquanto leio na nossa imprensa sobre a maracutaia milionária do suco de laranja destinado à merenda escolar, o multiplicar-se de estupros na Universidade Rural, a ocupação de mais duas escolas, e minha diarista me diz que a filha está sem aulas há mais de um mês, deparo-me, justamente, com uma conversa de Esther sobre educação.
Transcrevo algumas partes. "Agora estamos estudando a vida de Rimbaud e Verlaine (dois poetas que viveram no passado. Rimbaud é bonito e misterioso, escreveu seus primeiros poemas lá pelos 15 anos (4 mais que eu). Verlaine menos bonito (feio mesmo) é careca, e tem ar cruel. Eles se amam de amor (embora os dois sejam homens) mas a professora não insistiu muito nisso (ela não gosta de falar de amor)."
Quadrinho seguinte, a professora pergunta como as crianças qualificariam a relação de Verlaine e Rimbaud. E um menino logo grita "Homossexual, é claro".
E a professora: "Sim, mas antes de mais nada, amorosa, livre, artística e apaixonada". É quando uma menina levanta a mão para dizer que não acha correto falar de homossexuais em sala de aula, e que fica chocada.
Segue-se uma pequena digressão de Esther explicando que Verlaine era casado, tinha uma filha, um namorado, e que a hesitação entre a esposa e Rimbaud o tornava cruel.
Um outro aluno se levanta: "Professora, por que temos que falar deles? Não podemos falar de poetas que gostam de mulheres? É sério, eu acho triste ter que sempre falar dos homossexuais", e Esther comenta "Pelo que vejo, a homossexualidade era tão mal vista na época, quanto hoje."
A professora para então de falar no assunto, não sem antes contar do tiro de Verlaine que estraçalhou a mão de Rimbaud, e mandar as crianças decorarem o poema "Ma Boh`eme", de Rimbaud.
Esther acha o poema difícil. "Não compreendo tudo, mas acho muito bonito...".
Nos últimos dois quadrinhos, Esther conta, a seu modo, que Rimbaud parou de escrever e saiu pelo mundo que nem um vagabundo, que vendeu armas, e que a dor que sentia no joelho era um câncer, pelo que lhe cortaram a perna e morreu. E no quadrinho final, sentada na cama, diz que ela também sente dor no joelho quando levanta a perna, que teve medo, mas que o médico disse "é o crescimento".
O crescimento de Esther se faz aprendendo na escola, aos 11 anos, quem eram Rimbaud e Verlaine, e aprendendo com isso, de ricochete, como um preconceito se mantém ativo através dos séculos. Se faz aprendendo de cor um poema que, embora não compreendido inteiramente, ficará na sua memória para sempre (a ciência afirma que as últimas coisas que se apagam da memória são os poemas e as músicas aprendidas na infância). O crescimento de Esther se faz aprendendo que, como aconteceu com Rimbaud, o crescimento dói.
Os franceses se queixam da educação no país. Imagino que até na Coréia do Sul, que tem altíssimos índices educacionais, haja queixas. Mas não são queixas como as nossas, de falta de limpeza nos banheiros, ausência de porteiros, escolas depredadas, violência contra professores e colegas, greves eternas dos professores, falta de verbas, escolas fechadas por ordem dos traficantes. Esse quadro também é formativo. Embora com outros resultados.