Marina Manda Lembranças M anhã cedo, cidade grande, 27º. Uma mulher caminha apressada em direção à estação de metrô, tem hora certa par...
Marina Manda Lembranças
Para porque um movimento qualquer da cabeça colocou no seu campo visual uma janela, e essa janela, a única no prédio pequeno e certamente a única em toda a rua, está habitada. Quem habita a janela é uma mulher nem jovem nem velha, uma mulher com os antebraços apoiados no peitoril, que observa serena a rua. E a mulher está com seu cão.
Não é um cão pequeno, pelo contrário. Um cão grande, que se mantém ereto sobre as patas da frente, um tanto inseguro. E que logo entende a situação, deitando-se como pode , apaziguado.
A mulher do metrô olha a mulher da janela que agora alisa o cão. Poderia ser uma cena de cidade do interior, uma maneira pausada que já não se usa mais, de desfrutar a vida. A do metrô pensa na "conversadeira " que lhe deram de presente e que tem em casa, braço apoiado no alisar, mão segurando a cabeça, pensamento à solta. Mas outro elemento faz parte da cena, a da janela tem um celular.
A da janela tem um celular como as mulheres de antigamente tinham na mão um leque, ou um pente, ou até mesmo uma toalha branca com que acabavam de enxugar o cabelo ainda molhado do banho. À janela, eram elementos que diziam do fim do dia, ou do calor. Um celular, porém, constitui uma outra janela, uma janela a mais.
Estivesse em cidade do interior, em tempos de interior, a mulher à janela conversaria com uns, cumprimentaria outros, veria o farmacêutico conversando com o tabelião na calçada oposta, flagraria o filho da vizinha fazendo maldade com passarinho, saberia dos achaques e dos amores, das desavenças e dos conluios. Parada diante do grande olho da sua casa, estaria bracejando na vida.
Assim pensa a mulher do metrô, que já retomou seu caminho e na estação vai descendo as escadas rumo à plataforma. Pensa que a janela da outra está no segundo andar, e que se chamasse lá de cima ninguém atenderia, pensariam que está em surto. De um segundo andar nada se conversa. E é certo que, mesmo morando no bairro há anos, a mulher da janela não tem intimidade com as pessoas que passam abaixo, cada uma com sua meta, sua bolsa de compras, seu próprio cachorro ou sua bicicleta.
Por isso, levou o celular. Com toda a sua tecnologia, o celular na mão da mulher tornou-se uma janela de cidade do interior. Ela olha um pouco para fora, vendo a rua. E um pouco para fora, olhando a palma da mão. Alterna. Fala com uns e outros, manda cumprimentos, vê o filho da uma amiga na selfie, toma conhecimento de amores e desavenças, vê do outro lado da calçada as crianças emboladas à espera de que abram o portão da escola, , os carros que entram e saem do estacionamento, as pessoas que entram e saem da estação de metrô.
Não há ninguém nas outras janelas da rua. As janelas, numa grande cidade, não se usam para olhar, apenas para que entre a luz e, quando não está ligado o aparelho de ar condicionado, o ar. Mas considera-se mais prudente que o ruído fique lá fora, que o olhar alheio seja vedado pelas cortinas, e que a vida, além da familiar, chegue pela televisão.
A mulher do metrô, vê o seu trem chegar. Está em boa hora. Chegará ao consulado antes do fechamento, e conseguirá seu visto para ir à China.