Marina Manda Lembranças H ouve tiroteio na madrugada, ao lado da minha casa. Quem empunha as armas se prepara antes, mas quem dorme é p...
Marina Manda Lembranças
Podia ser uma caçada entre polícia e narcos. Podia ser a disputa entre duas facções. A diferença entre um e outro deveria ser maior. Mas talvez a diferença esteja apenas na qualidade superior do armamento dos narcos.
Deitada na mesma posição em que fui acordada, penso nos opositores escondidos entre vielas e becos, descendo escadas mal traçadas, pisando em lixo e lama, corpos ocultos pelas quinas, que em algum momento será necessário expor para revidar o ataque. Um tiro de fuzil tem potência para varar paredes. E além das paredes, no escuro em que nenhuma lâmpada se acende, pessoas que como eu foram acordadas por esta batalha sem ideologia se protegem como podem, deitam no chão as crianças.
E tudo recomeça. Rajadas, tiros, explosões de granadas. Nada entendo de tática de guerrilha, mas deve haver uma razão para esta sequência que se repete, e se repete, intercalada de silêncios.
Moro em Ipanema, ao lado do morro Pavão/Pavãozinho, que cobre toda a encosta e se derrama do outro lado sobre Copacabana. Sempre, quando há tiroteios, a intensidade do som revela um deslocamento, a caçada que começou deste lado se prolonga do outro, ou vice versa. Desta vez, começaram tão perto que pareciam estar debaixo da minha janela, e aos poucos foram tentar se matar em Copacabana.
Há quase vinte anos escrevi um conto sobre um tiroteio igual a este, um dos tantos que assolam esta área aparentemente privilegiada da cidade. O título era,"Começou, ele disse". E a situação assemelhava-se à que acabo de viver, "Acordou com o primeiro tiro sem saber porque tinha acordado". Nesta madrugada eu soube logo, tenho mais experiência que a personagem, uma experiência alimentada por repetições ao longo desses vinte anos. "O segundo tiro estalou seco na rua. O som colheu-o no estômago, na cabeça, na pele. E com a pele pareceu eriçar os lençóis, ferir a colcha “(...) Um tiro que assalta nosso sono sempre atinge o alvo, ainda que o alvo não sejamos nós, pensou surpreendido com a nitidez do pensamento. Sentia-se atingido".
Eu também estou me sentindo atingida. Acompanhar o tiroteio me transfere da civilização para a barbárie, implode a minha modernidade, põe a nu minha impotência. A troca de tiros não pertence só aos que apertam o gatilho, não atinge somente os feridos e mortos. É praga que se alastra como óleo contaminando todo o entorno.
Mas no dia seguinte, sol radioso em Ipanema, vestígio nenhum do que havia acontecido. Pergunto a um taxista se rolavam no ponto comentários sobre o tiroteio. Me olha surpreso como se eu estivesse falando da conquista de Marte. Carro nenhum da polícia estacionado na subida do morro. À noite, ligo o Jornal Nacional para ter algum feedback, mas os tiroteios em Acari dominam o noticiário, e daquele de Ipanema nem se fala. Vai ver, só teve importância para mim. A cidade, esta que outrora foi maravilhosa, já não registra ocorrências deste tipo, passou a considerá-las normalidade.