Marina Manda Lembranças T odos os dias, quando entro no banheiro, encontro uma formiga minúscula andando sobre o piso. Sei que não é a ...
Marina Manda Lembranças
Disso eu queria falar, da formiga. Mas entre mim e ela se intromete no meu pensamento uma outra imagem, uma outra urgência. São os furos de tiros nas paredes da Rocinha, que o prefeito Crivella considera importante tapar, como parte da operação "banho de loja".
Quando, já fazem muitos anos, visitei o Museu Pergamon, em Berlim, o muro que separava os dois lados da cidade acabava de ser derrubado. Na rua do Museu, antes pertencente a Berlim oriental, eu e meus companheiros de viagem vimos surpresos que as paredes continuavam roídas pelos furos. Eram os resquícios da Segunda Guerra, que o regime comunista não havia se dado o trabalho de cancelar, ou que havia preferido manter como lembrança viva da luta e da vitória.
Os outros se aproximaram, passaram os dedos nos furos, fizeram conjecturas sobre as armas que os haviam provocado. Eu não. Para mim não era novidade. Guardava ainda na memória a parede verde junto à escada, no hotel que havia sido refúgio de infância e ao qual voltávamos pouco depois de assinados os tratados de paz daquela mesma guerra que havia marcado a rua do Pergamon. A parede verde estava toda rendilhada de branco pelos furos de balas, emboço exposto, e foi impossível não imaginar a cena, eu subindo a escada quando os tiros morderam o verde.
A formiga percorre o piso do banheiro, para ela imenso. Não há nada ali que se coma, não há nada ali onde possa proteger-se de eventuais ataques. A formiga está só e desamparada como um explorador na superfície gelada do ártico. Não tem como saber que eu não a atacarei.
O prefeito quer tapar os furos nas paredes da Rocinha. Me esforço para crer que tenha intuitos nobres. Mas não é de banho de loja que a Rocinha precisa. Lojas há muitas por lá. Tapar os furos com reboco e tinta pode apagá-los ao olhar mais superficial, mas não os anula. Os buracos abertos pelos tiroteios, mesmo quando preenchidos, continuam na memória de quem vive naquelas ruas, estão armazenados nas recordações das crianças junto com as lembranças do medo.
Tapar os furos das balas não tem o mesmo efeito que tapar o cano do fuzil de onde as balas partiram. Enquanto os pedreiros da prefeitura estiverem trabalhando, os fuzis continuarão circulando livremente nas vielas e becos, prontos para disparar novos tiros e abrir novos furos. Reboco não basta para intimidar fuzis.
Talvez o prefeito considere que tapar os furos das balas vai devolver dignidade aos moradores da Rocinha. Eu pessoalmente acho que para devolver a dignidade seria melhor dotar a comunidade de esgoto, fazer a coleta do lixo, proteger os moradores contra a ação dos traficantes.
A formiga está sozinha sobre o piso frio do meu banheiro. Mas não é sozinha que ela vive. Olho para o pontinho preto que se desloca, e sei que vive em uma sociedade complexa, onde ordem e hierarquia comandam a ação dos indivíduos. É provável que esteja atravessando o meu banheiro em obediência a uma ordem do coletivo. E formigas não têm armas para furicar o formigueiro alheio.
Penso que ninguém disse ao prefeito, mas tapar os furos das balas deveria ter sido a última ação coroando o completar de ações mais urgentes, e não a primeira, talvez a única.