Marina Manda Lembranças A o olhar, a Lesma de Fogo do Ártico se apresenta igual às lesmas que por vezes devoram folhas no meu jardim. ...
Marina Manda Lembranças
Tudo certo na primavera e no verão. A Lesma se empapuça de folhas de salgueiro ou de betúla ou se contenta com folhas de arbustos. Tem que comer muito e rápido, porque com a chegada do inverno já não terá com que se alimentar. Ao sopro do primeiro frio abriga-se debaixo de uma pedra. E é ali que, encolhida, opera o mistério. A Lesma deixa-se tomar pelo gelo. Sangue, carne, o pelo afogueado, as patas tantas, tudo nela é invadido. O coração para de bater, o cérebro para de comandar. E ela hiberna da maneira mais radical de que se tem notícia, para só voltar à vida na primavera, com o degelo.
As 177 pessoas que, ao longo de anos, quiseram ser congeladas após a morte e que assim continuam em câmaras criogênicas nos Estados Unidos, não acordam na primavera, nem se sabe se acordarão algum dia. Muitas mais já pagaram por seu futuro congelamento e estão só esperando a hora certa. Dizem que Walt Disney também quis ser congelado após sua morte – chegou-se ao requinte de dizer que só seria descongelado quando se descobrisse a cura do câncer que o matou – mas o depoimento da filha e a falta de provas indicam que se trata de mais uma lenda urbana.
O fato é que esses humanos todos - e a gente se surpreende que sejam tantos- foram congelados depois da morte, quando um outro frio se apodera naturalmente do corpo e a mente já nada registra. Mas o que sente a Lesma quando o fogo que traz no nome se apaga e ela percebe o gelo subindo-lhe pelas veias e tomando-lhe as entranhas? Tem medo, a Lesma ? Ou, desconhecendo qualquer outra realidade que não a obrigue a abdicar de si mesma, se entrega serena à fatalidade?
E o que sente no degelo? Percebe o progressivo liquefazer-se do sangue? Ou não há progressão alguma, e o coração que acorda repentino põe tudo para funcionar? Uma coisa é certa: a Lesma desperta morta de fome!
Não creio que um cérebro congelado tenha capacidade de sonhar. Os longos meses de inverno passam então em negra escuridão. Tão negra, que talvez nem pareçam passar, tudo sendo apenas um abrir e fechar de pálpebras, um instante, um estalar de dedos.
É uma bela metáfora. Quando tudo ao redor se torna insustentável, quando nos falta alimento para a alma, quando nosso desejo já não tem de que sobreviver, podemos deixar o gelo tomar conta, zeramos mente e coração, à espera de que volte a primavera.
Assim fazem os que sobrevivem a situações extremas, a longas guerras, a condenações terríveis sem prazo para terminar. Quando não adianta debater-se ou gritar, quando lutar só leva a maiores sofrimentos, deixar-se congelar pode ser a maneira de manter acesa a mínima chama da vida.
A Lesma de Fogo privilegia-se pela falta de opção. A natureza não lhe deu possibilidade de escolha. Aos humanos, porém, mesmo em situações tão adversas quanto as do Ártico, a escolha é possível. Podemos sempre decidir enfrentar o insustentável, mesmo conscientes de que o gesto equivale a apagar definitivamente a chama.