Marina, Branca e Bartolomeu no Salão do Livro Infantil e Juvenil em Belo Horizonte Estado de Minas, quinta-feira, 19 de janeiro de 20...
Marina, Branca e Bartolomeu no Salão do Livro Infantil e Juvenil em Belo Horizonte |
Estado de Minas, quinta-feira, 19 de janeiro de 2012
Na estação, um último sorriso
Bartô se foi e quero me despedir dele. Não tive tempo de fazê-lo nos últimos meses, nem podia saber que havia chegado a hora, embora há tempos o soubesse de mala feita. E não posso, agora que o trem partiu, ficar na plataforma da estação vazia, sem ter-lhe dado um último abraço, um último sorriso, um último olhar cúmplice.
Um homem muito especial esse Bartolomeu, a quem já o nome parecia caber com reservas. Era um mudo loquaz, um manso feroz, um tímido exposto. A última vez em que estivemos juntos, em BH, setembro, no Salão Infanto-Juvenil, conversamos longamente enquanto, numa espécie de camarim, esperávamos o início de uma mesa-redonda que faríamos, com Branca Maria de Paula. Rimos muito. Bartô dizia que tinha decidido ser a favor. “A favor de quê” – perguntei –, logo você, tão critico? “De tudo”! E ria, com aquele riso sério dele, aquele riso às vezes cortante. Ia ser a favor de tudo, para não se desgastar tanto sendo contra. Contra a fatuidade, contra o arrivismo, contra a vulgaridade mental que anda fazendo tanto sucesso e que ele não suportava.
Conversamos tanto naquela tarde – o início do debate demorava. A conversa estava tão boa que ele de repente disse que era isso que o público devia ter assistido, isso o que o público merecia, ver nós três brincando com palavras e ideias, tudo sincero e espontâneo, tão melhor do que poderíamos fazer no enrijecimento de uma mesa.
Mas tampouco era verdade. Ele sempre podia alcançar o máximo, mesmo sentado, quase imóvel, atrás de uma mesa. Várias vezes o vi. Não era de muitos gestos, não parecia ter muita voz. Começava de cabeça inclinada sobre o peito, as mãos unidas sobre o tampo da mesa, falando bem devagar, baixo. Fazia pausas, como quem procura. Não estava procurando. Seu material principal de trabalho, a memória, estava organizado e pronto. As pausas eram uma forma de dar tempo ao público para sair do ritmo acelerado do cotidiano, sair do seu próprio tempo, e entrar no tempo dele, tempo do narrador que vai desfiar suas histórias.
E as histórias de Bartô, mesmo as mais surpreendentes, eram sempre mais tocantes do que incríveis. A primeira vez que o ouvi contar de sua mãe, que, para vencer o tédio de uma vida sem atrativos e acrescentar algum gosto aos domingos, jogava as galinhas no tanque e as pintava com anilina, enchendo o quintal de presenças vermelhas, verdes, amarelas, azuis, pensei que fosse ficção. E talvez o fosse, em parte. Porém, ouvindo-o contar esse mesmo episódio outras vezes, para adultos e para crianças, sempre sério, sempre pausado, as galinhas coloridas deixaram de ter importância, e percebi que ele contava o domingo sem diversão, a vida sem alegria, o cotidiano áspero, e a presença da mãe alegrando tudo com suas manchas de cor.
“Nascer” – disse Bartô em seu último livro, o romance autobiográfico Vermelho amargo – “é afastar-se do paraíso”. Mas, embora afastado, gostava de repetir com aquele seu entusiasmo discreto: “A vida é um escândalo!”
O escândalo da vida, que seu avô – de ficção ou de verdade, sabe-se lá– registrava escrevendo nas paredes da casa, foi registrado pelo neto em livros, peças, ensaios. A casa do avô desfez-se, mas o trabalho do neto permanece, e viva está sua assinatura: Bartolomeu Campos de Queirós.