Estado de Minas C omprei aspargos roxos. Na embalagem estava escrito “importados”. Compro aspargos com alguma frequência, para fazer riso...

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“Bom este aspargo”, disse meu marido. E eu, colhendo a oportunidade de dizê-lo sem me gabar, mas orgulhosa como se fosse um feito meu, lancei a resposta sobre a mesa: é importado!
Importado de onde? veio ele. Embatuquei. Não tinha a menor ideia. Como uma pedra na vidraça, a pergunta estilhaçava a minha desatenção, e percebi que havia comprado um produto antes vivo sem saber sua procedência, como se a procedência não fizesse parte dele. Com isso, perdia a paisagem onde o aspargo havia crescido, o rosto e os modos de quem o havia plantado ou colhido – ou pelo menos a ideia que teria dessa gente e paisagem se apenas os localizasse geograficamente. Eu havia pago um preço especial por tudo isso, porque tudo isso estava incluído no valor da palavra “ importado”, mas acabara desprezando a parte mais saborosa da minha aquisição.
De alguma maneira, o tema “aspargos” continuava na minha rota, porque no dia seguinte, inesperadamente, os reencontrei ao fazer uma pesquisa. No livro Les femmes et l’ amour, do escritor e homem de televisão e cinema Jerome Clement, dei de cara com uma frase da atriz francesa Genevieve Page, que em outro momento não teria me chamado a atenção: ”Hoje em dia, tentamos atravessar o mundo de olhos e corações fechados, para não ver o que acontece. Senão, que horror seria comprar aspargos!”.
O horror possível intrometeu-se de estalo entre meus talos roxos. O que sabia Genevieve que eu ignorava? A que se referia? A agrotóxicos, a irrigação com água poluída, a semiescravidão dos plantadores, a conservantes químicos, a amadurecimento artificialmente provocado? Que dura existência haviam atravessado meus aspargos antes de vir coroar as tagliatelle? Desejei recuperar a embalagem para tentar, ao menos, localizar o horror no mapa. Mas sou dona de casa diligente, a embalagem havia partido no lixo.
Os aspargos agora já participavam da intimidade interior do meu corpo, sem que eu tivesse qualquer intimidade com o deles. Algo me havia dado o direito de comê-los sem interrogá-los. E esse algo não era o dinheiro que havia pago para que fossem meus. Era a sensação ilusória de que eles só haviam sido plantados, só haviam vivido, ainda que brevemente, para me alimentar.
Como se pede perdão a um maço de aspargos roxos que já deixaram de existir? Como dizer, se não nos ouvem: a culpa não foi minha, vocês chegaram sem cheiro ou traço de terra, sem raízes, cortados todos do mesmo tamanho, atados por elásticos azuis, vocês vieram embrulhados em plástico como se de plástico fossem, e eu, por vício ou desamor, perdi a reverência a que tinham direito.
Ainda assim, não quis dar razão a Genevieve. Não deixarei de comprar aspargos. Olhos e os corações se fecham e se abrem, como janelas. O mundo é grande e as plantações são tantas, não dá para atravessá-las todas em vigília. Os aspargos hão de entender. Respeitá-los e comê-los, ainda me parece melhor do que submetê-los a interrogatório, para depois rejeitá-los e deixá-los morrer em podridão.