Estado de Minas, quinta-feira, 16 de agosto de 2012 Um casal de bem-te-vis resolveu fazer ninho entre os ramos da minha madressilva f...
Estado de Minas, quinta-feira, 16 de agosto de 2012
Um casal de bem-te-vis resolveu fazer ninho entre os ramos da minha madressilva florida. Não haveria nisso nada de surpreendente, não estivessem os ramos numa jardineira de terraço, 16 andares acima do chão. Olho daqui a rua e a praça cheia de árvores, e me sinto envaidecida pela escolha. Um casal gentil veio fazer parte da minha família.
É temporário, eu sei. Já aconteceu antes, em tempos idos. Vieram durante três anos, depois, nunca mais. Não há possibilidade desses serem os mesmos de então, nem de serem seus filhos. E um hábito residencial desses não passa indefinidamente para a descendência. São outros. Gosto de crer que são jovens e que voltarão no ano que vem.
Que tão pouco sei de quem veio me alegrar com cor e canto. Nunca me perguntei, por exemplo, onde moram quando não estão chocando e criando filhotes. Este ninho tão trabalhoso de fazer, fiapo a fiapo trazidos no bico até esta altura, será abandonado assim que os filhotes souberem voar. E se o casal voltar no ano que vem, a morada, largada sem caseiro ao longo de tantos meses e tantas ventanias, terá que ser refeita. Por que, então, não ficam aqui ?
Como para os humanos, criar filhos é duro. Por enquanto, tudo bem, os ovos ainda não se abriram, há um movimento discreto, chamados, um vai o outro fica. Mas quando os pequenos bicos romperem a casca, o bicho vai pegar, literalmente. A fome de um filhote de bem-te-vi é infinitamente superior ao seu tamanho, constante, aguda, e exigente. Eles gritam e gritam, os pais não param de trazer coisinhas, e não podem sequer se socorrer com uma lanchonete.
Da última vez que tive hóspedes dessa mesma espécie, vi até aonde pode chegar o drama de uma família. Eram dois pequenos. Graças à labuta e dedicação dos pais, cresceram ambos. Um se foi. A mãe preparou-se para a partida do segundo. Mas este, achando a vida muito confortável, ficou. Crescia, e continuava exigindo comida, cada vez mais esfaimado, pois a fome ia ficando proporcional ao tamanho. De baixo, eu via a mãe desesperada, sem forças para continuar sustentando o marmanjo, sem tempo quase para ela própria se alimentar. E um dia, simplesmente, o entardecer não a trouxe de volta ao ninho.
Para minha angustia, o filhote gritou o dia seguinte inteiro. À noite, o vento sudoeste soprou furioso, portas e janelas batiam em desespero. E no meio daquele pandemônio, ouvi o piado, agora fraco. Saí para o terraço debaixo de chuva, e no escuro, guiando-me pelos seus chamados, tateando, fui achá-lo em meio a outras plantas debaixo da minha janela.
Estava ensopado. Tirei a camisola molhada, vesti um roupão atoalhado e, para que se aquecesse, o coloquei junto ao peito, agazalhando-o com o roupão. O dia ainda demoraria um pouco a chegar. Meti-me com ele na cama, disposta a aproveitar o tanto de sono que me restava ( não, eu não o esmagaria, também sou mãe, sei dormir atenta ao pequeno). E já começava a desenhar-se em claro o recorte das coisas, quando senti algo estranho. Abri o roupão. O filhote e o meu peito estavam cobertos de pulgões.
Farejando a morte inevitável, haviam se apropriado do seu corpo ainda no ninho. E agora, no calor, se expandiam como proprietários. O fim daquela breve vida havia sido decretado, e meu amor nada pode fazer para salva-la.