Estado de Minas U m casal de bem-te-vis resolveu fazer ninho entre os ramos da minha madressilva florida. Não haveria nisso nada de surp...
Estado de Minas
É temporário, eu sei. Já aconteceu antes, em tempos idos. Vieram durante três anos, depois, nunca mais. Não há possibilidade desses serem os mesmos de então, nem de serem seus filhos. E um hábito residencial desses não passa indefinidamente para a descendência. São outros. Gosto de crer que são jovens e que voltarão no ano que vem.
Que tão pouco sei de quem veio me alegrar com cor e canto. Nunca me perguntei, por exemplo, onde moram quando não estão chocando e criando filhotes. Este ninho tão trabalhoso de fazer, fiapo a fiapo trazidos no bico até esta altura, será abandonado assim que os filhotes souberem voar. E se o casal voltar no ano que vem, a morada, largada sem caseiro ao longo de tantos meses e tantas ventanias, terá que ser refeita. Por que, então, não ficam aqui ?
Como para os humanos, criar filhos é duro. Por enquanto, tudo bem, os ovos ainda não se abriram, há um movimento discreto, chamados, um vai o outro fica. Mas quando os pequenos bicos romperem a casca, o bicho vai pegar, literalmente. A fome de um filhote de bem-te-vi é infinitamente superior ao seu tamanho, constante, aguda, e exigente. Eles gritam e gritam, os pais não param de trazer coisinhas, e não podem sequer se socorrer com uma lanchonete.
Da última vez que tive hóspedes dessa mesma espécie, vi até aonde pode chegar o drama de uma família. Eram dois pequenos. Graças à labuta e dedicação dos pais, cresceram ambos. Um se foi. A mãe preparou-se para a partida do segundo. Mas este, achando a vida muito confortável, ficou. Crescia, e continuava exigindo comida, cada vez mais esfaimado, pois a fome ia ficando proporcional ao tamanho. De baixo, eu via a mãe desesperada, sem forças para continuar sustentando o marmanjo, sem tempo quase para ela própria se alimentar. E um dia, simplesmente, o entardecer não a trouxe de volta ao ninho.
Para minha angustia, o filhote gritou o dia seguinte inteiro. À noite, o vento sudoeste soprou furioso, portas e janelas batiam em desespero. E no meio daquele pandemônio, ouvi o piado, agora fraco. Saí para o terraço debaixo de chuva, e no escuro, guiando-me pelos seus chamados, tateando, fui achá-lo em meio a outras plantas debaixo da minha janela.
Estava ensopado. Tirei a camisola molhada, vesti um roupão atoalhado e, para que se aquecesse, o coloquei junto ao peito, agazalhando-o com o roupão. O dia ainda demoraria um pouco a chegar. Meti-me com ele na cama, disposta a aproveitar o tanto de sono que me restava (não, eu não o esmagaria, também sou mãe, sei dormir atenta ao pequeno). E já começava a desenhar-se em claro o recorte das coisas, quando senti algo estranho. Abri o roupão. O filhote e o meu peito estavam cobertos de pulgões.
Farejando a morte inevitável, haviam se apropriado do seu corpo ainda no ninho. E agora, no calor, se expandiam como proprietários. O fim daquela breve vida havia sido decretado, e meu amor nada pode fazer para salva-la.