Estado de Minas N o sábado de manhã já teria sido tarde. O destino estava em ação na sexta. Mas foi no sábado que atravessei em diagona...
Estado de Minas
Página a página, atravessei o mensalão, os escândalos, a caixa dois, os preparativos eleitorais e, quase distraída, caí de novo em Costa Barros. Algo, então, começou a sibilar. O nome da menina estava no início da matéria. Reparei, ainda de alma leve, que o nome dela era o mesmo da filha da minha diarista. Cheguei a pensar que o nome que me parecera original quando do nascimento da criança, talvez fosse moda naquele momento. Aí me dei conta de que as duas tinham a mesma idade. E foi em pleno pânico que, lendo o sobrenome, o senti familiar. Li de novo. Era o mesmo.
O mesmo, embora invertido. Da Silva Ribeiro, e Ribeiro da Silva. Podia ser um erro do jornal. Ela não mora em Costa Barros. Mas podia ter ido lá. Tudo podia. Minha alma, até então serena como se ausente, encrespou-se inteira – basta uma gota de limão para talhar o leite. E eu temi, temi, temi.
Telefonamos. Minha diarista atendeu quase risonha, sem se dar conta da intensidade da nossa angustia. Nem era eu ao telefone, eu não conseguiria. Estava tudo bem, vira a notícia a noite antes na televisão, uma coincidência. Para ela, filha ao lado, susto nenhum.
Tomei um copo de água para recompor a minha alma. Mas uma Bruna de 11 anos, uma Bruna semelhante àquela que, recém nascida, a mãe trouxera para eu conhecer, estava morta. E minha alma não havia se descomposto por ela, ao encontrá-la baleada na nota da primeira página. Ela não era gota de limão.
Nem para mim, nem para o redator da nota, que não a havia posto no título, mas na última linha, sem nome sequer, menos importante que os cinco ônibus queimados. Ou talvez, menos notícia, porque as balas perdidas parecem tão corriqueiras quanto as balas acertadas, e é tão comum que crianças estejam na linha de tiro.
Costa Barros fica ali pelos lados do Complexo do Alemão, onde tudo é favela, ou quase, onde tudo é pobreza e violência, ou quase. Quando vou e volto da minha casa de montanha ou do aeroporto, vejo o Complexo que se estende, e em algum lugar onde meu olhar não pousa está Costa Barros. Distante de mim como se pertencesse a outra cidade, outro estado, outro fuso horário.
Como posso sofrer pela morte da menina que não conheço, a menina de Costa Barros? E como posso não sofrer por ela? Sofremos pelos nossos, que são poucos e já são demais, sofremos pelos que já moram no nosso bem querer. Os outros não são “o próximo” que devemos amar, são só outros. E não cabem em nossas almas estreitas. Se baleada tivesse sido a menina para quem trouxe brinquedinhos das viagens, aquela de quem acompanhei o crescimento, eu estaria devastada. Mas era outra, e tudo o que senti foi alivio. Só agora, estendendo-lhe a mão para escrevê-la, eu a encontro. E sem conseguir pranteá-la, a acalento.