Estado de Minas C idade portuguesa pequena, farmácia, fila bem comportada e consistente. Entra uma senhora alta, bem vestida. É visivelm...
Estado de Minas
— Procuro — diz a senhora com pose altiva, e em tom a ser ouvido por todos — uma embalagem de netos. Teria?
— Oh sim! Justamente ontem recebemos algumas.
— Pois preciso de uma com dois netos.
As duas crianças se afastaram da avó, uma se encostou na parede, a outra buscou refúgio junto à balança.
— Dois netos — repete a senhora mantendo-se séria. Quero, por favor, um neto que não seja mentiroso. E uma neta que não seja preguiçosa.
A preguiçosa traça sobre o piso, com a ponta do sapato, desenhos invisíveis. O mentiroso se entretém com um fiapo que sai do passador do cinto. O olhar de todos os clientes da farmácia pesa sobre suas cabeças, certamente por isso as mantêm baixas.
E porque mantêm a cabeça baixa, as duas crianças não vêm que há mais carinho nesses olhares do que reprovação, e que naquele momento, para elas seriíssimo, os outros, os outros todos menos a avó, estão sorrindo.
Não posso continuar na farmácia, estou na cidade a trabalho, já comprei o que vim buscar, tenho que ir. Não saberei o que aconteceu depois. Mas nada do que possa ter acontecido será suficiente para apagar a mortificação das duas crianças.
A infância é campo minado, a qualquer momento podemos ser humilhados em público. Um passo em falso basta, e pode ser nosso ou de um adulto. Menina, deixei cair uma faca no chão de mármore do restaurante elegante, e o som, como um brilho, repercute na minha memória em pura vergonha cada vez que lembro o episódio. O menino daltônico fez o mapa e pintou o mar de roxo, não entendeu por que estava sendo repreendido pela professora, mas entendeu o riso das outras crianças da sala. A mãe revelou diante de todos que a filha fazia xixi na cama. Durante meses a filha passou a fazer xixi na cama de propósito.
Que ninguém duvide do amor da avó da farmácia por seus netos. É porque os ama que quer educá-los, fazer com que o neto cresça sincero, a neta operosa. O pequeno teatro que armou, aproveitando o público ocioso daquele sábado de manhã, pareceu-lhe arma eficaz. Na certa, chegando em casa, contou a cena rindo baixo para o filho ou filha a quem entregou as crianças.
Na hora, eu também achei a cena engraçadinha. A ideia da senhora era criativa, absolutamente inusitada. Mas o desenho traçado pelo pé da menina chamou minha atenção, e me pareceu que só ela e eu conseguíamos ler aqueles arabescos inexistentes. Sobre o piso asséptico da farmácia, a ponta do sapatinho havia escrito com cuidado e determinação: “Odeio os adultos”.
Tivesse eu um sapatinho como o dela, teria escrito ao lado, “tem toda a razão”, mesmo sabendo que pertenço a essa parte da espécie humana, plenipotenciária e imprevisível, que ora ama ora arrasa, e que as crianças são sempre obrigadas a olhar de baixo para cima.