Estado de Minas A s cidades mudam, mas as lembranças ficam. É um sistema urbano generoso que permite aos cidadãos, sobretudo os mais vel...
Estado de Minas
Horizontal, no Mangue, era a atividade, quando da minha adolescência. Operava ali o baixo meretrício. Acho que o mais baixo. Os homens de todas as classes iam, ou tinham ido, e não se envergonhavam de contar. Iam “às putas” como iniciação, como desafogo, como programa de macho. E as inscreviam na literatura, na pintura, na música popular.
Nós, garotas de Ipanema, líamos os livros, víamos os quadros, ouvíamos as conversas dos colegas homens. E fantasiávamos. Mas, é claro, estávamos impedidas de conhecer a realidade. E porque aquilo que não se pode ver parece sempre mais interessante do que é, decidimos romper o tabu.
Tinha um namorado, e o namorado tinha um carro. Meu irmão tinha uma namorada, e a namorada era minha melhor amiga. Começamos então a insistir as duas para que, no carro do namorado e com a companhia vigilante do irmão, nos levassem para ver a zona. Insistimos tanto que eles, até divertidos com nossa curiosidade, acabaram concordando.
Fomos numa noite de sexta, quando era grande o movimento. O carro, um Ford Anglia, passaria lentamente por uma rua e subiria por outra, vidros fechados. Só isso. Fomos.
O movimento começava antes mesmo de chegar às ruas das moças. E o cheiro. Era uma multidão de homens indo e vindo, como se nas cercanias de uma estação. Viagem era mesmo o que os chamava, e iam quase todos sozinhos, escuros no escuro, apressados na ida, apressados na volta. O Anglia entrou na primeira rua.
E, de repente, me vi participando de um quadro de Di Cavalcanti, de uma gravura de Lasar Segall. Ali havia luz, vinda da iluminação das ruas, e saindo das casas, luz recortada pelas frestas das venezianas, ou derramada, vermelha, pela porta aberta. Naquelas casas antigas, muitas só porta e janela, descascadas, decadentes, havia uma efervescência de vida, intensa, ruidosa, colorida, sem alegria e sem tristeza, uma feira a céu aberto que se prolongava nas calçadas.
Havia mulheres nas janelas, expostas e chamando os fregueses, mas ao mesmo tempo postas ali como se descansassem ou tomassem a fresca, de calcinha e sutiã, e havia mulheres diante das portas e nas calçadas, de combinação ou de calcinha e sutiã, e a combinação era curta e apertada, e as calcinhas eram grandes porque ainda não existia fio dental, e os sutiãs eram pontiagudos e largos, feitos de damasco claro pespontado, e as mulheres eram gordas, porque não havia ali dinheiro para comprar rendas ou manter corpos perfeitos, ou porque as rendas e a perfeição não eram necessárias, já que os clientes, todos os clientes, haviam vindo para comprar e comprariam sem enquadrar o produto em grandes exigências, guiados por um desejo que não precisava ser atiçado.
Enquanto o carro se deslocava lento, sobrepus a realidade a minhas fantasias. E naquela noite tive a impressão de entender melhor a vida, entender melhor a arte. Mas foi só naquela noite.