Estado de Minas C onsumida a ceia, abertos os embrulhos dos presentes, jogados fora papéis e fitas que já não servem, resta ainda no esp...
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10 mil anos. Foi o que se estabeleceu em 1980, quando o achado arqueológico do esqueleto de um adolescente atacado de nanismo permitiu dizer que já nos primórdios da espécie humana uma criança deforme era aceita pela comunidade. E agora, pela imprensa, nos chega um repique. O “esqueleto numero 9”, escavado em um sito arqueológico no Norte do Vietnã, foi encontrado em posição fetal, e a posição, aliada aos evidentes sinais de uma doença debilitante, nos revela que aquela pessoa não poderia desempenhar-se sozinha, tendo vivido, ainda assim, até os10 anos. Alguém cuidava dela. O número 9 tem 4 mil anos.
Eu sempre soube que os antigos romanos jogavam as crianças defeituosas – a palavra utilizada era essa, ainda não havíamos chegado ao politicamente correto - do alto de um rochedo chamado Rupe Tarpea. Muitas vezes, na infância, me contaram essa tradição histórica apontando para a Rupe. Não pretendia ser uma ameaça, mas toda criança se acha cheia de defeitos e eu estremecia, considerando uma sorte não ter nascido em tempos tão antigos.
A compaixão, que talvez seja até anterior ao adolescente com nanismo, encontrou solo pouco fértil para se espalhar. Fincou raízes, mas não fez floresta. 10 mil anos depois, continua sendo um sentimento individual. As massas não são compassivas, jamais o foram.
Não é exatamente compaixão pelas 20 crianças mortas em Newtown que está levando a sociedade americana a manifestar-se contra a livre venda de armas. É medo pelo que possa acontecer a suas próprias crianças se medidas não forem tomadas. É desconforto diante do retrato de si mesma que emerge após mais esse massacre. A compaixão inicial desembocou nos interesses pessoais.
Compassivo foi Francisco de Assis, mas não o seu entorno. Os jovens que o seguiram – nobres e populares - descobriram a compaixão através de suas palavras e de seu exemplo. E embora só fizessem o bem, embora nada tivessem de seu e vivessem pobremente, embora cuidassem dos doentes e dos leprosos de quem ninguém queria se aproximar, foram frequentemente escorraçados, surrados e tomados por loucos. Já fazia um bom tempo que Cristo havia dito para amar ao próximo como a si mesmo, e ainda tão poucos tinham ouvido.
Não há de ter sido compaixão social que manteve vivo até os 10 anos o menino paralítico do Vietnã. Num período de sobrevivência extremamente dura, dependente da força física, parece pouco provável que uma tribo inteira, se de tribo se tratava, zelasse pela vida de alguém que dava trabalho constante e nada podia produzir para a coletividade. Mais fácil é acreditar no amor da mãe ou de quem por ela, o amor de uma pessoa que tomou a si o encargo de cuidar daquela criança e mantê-la viva, e que a protegeu até onde pode.
Lorna Tylley, a arqueóloga que escavou o “esqueleto número 9”, vê nele uma demonstração de tolerância e cooperação na sociedade. A mim, que nada sei daquela remota gente, parece apenas um sinal de que já existia o amor.