Estado de Minas E stávamos na Alemanha trabalhando, eu como autora em feira de livros, ela como minha tradutora. Mas há sempre brechas ...
Estado de Minas
Não, não havia colhido a última flor do Lácio por amor a um brasileiro, mas por ter vivido dois anos em Porto Alegre. Seu marido, agora ex, era um belo alemão. Belo e que ela amava, mas que progressivamente, sem causa aparente ou queixa, havia deixado de fazer sexo. De querê-la, não. Continuava afirmando seu amor, dizia-se apegado ao casamento, mas à noite só apagava a luz para dormir.
Ela pensou que fosse uma fase, passaria, o homem era bom, mais valia esperar. Seu corpo porém estava impaciente, ardia em ânsias. E então leu num jornal o anúncio de um curso de dança de salão, mais especificamente, tango. Porque foi até lá não sabe, embora agradeça aos deuses. Tango nunca havia entrado nas suas cogitações, não tinha no histórico nenhum parente argentino, nenhum namorado portenho. Mas foi, e a partir daí, não faltou a uma aula.
Tensa a princípio, insegura, logo revelou um talento tangueiro insuspeitado. A ânsia toda do corpo insatisfeito meteu-se pela batida dramática e sensual do tango como se entrasse em uma segunda pele. E ela cintilou. Passou a sair todas as noites sozinha, para dançar. Com o tempo, dançava tão bem que tornou-se difícil encontrar quem quisesse ser seu par.
Eu perguntei pelo marido, ela me respondeu brevemente que haviam se separado. Mas em seguida, porque ainda tínhamos tempo disponível, me explicou apaixonadamente o tango, sua beleza, seu significado, e a força do dialogo que se estabelece quando o par se funde na musica.
Percebi que havia trocado definitivamente de paixão. O tango era bem mais seguro que o marido.
No dia seguinte, um carro veio me buscar para me levar ao aeroporto. O motorista era jovem, cara nada germânica. Disse, em inglês, chamar-se Marcos. Para fazer um pouco de conversação, perguntei qual a sua origem. Vinha do Equador. Sorri já sentindo-me íntima, e disse que então podíamos falar em espanhol. Não podíamos, ele havia sido adotado quando criança, desconhecia sua própria língua.
Mas eu havia tocado em um ponto sensível. Houve uma pausa, nós ali metidos no trânsito, um avião lá adiante prestes a me recolher. E de repente, sem tirar os olhos da estrada, ele disse quase numa exclamação, “Eu sou inca”. O perfil dele dizia a mesma coisa.
Contou que há algum tempo andava pesquisando, estudando, pois queria muito saber da sua origem, da sua cultura. E queria conhecer seu país. Não fez qualquer aceno aos pais biológicos, mas disse que seus pais alemães haviam ficado muito surpresos ao ver emergir com tanta veemência o seu eu latino. Diante daquele nariz de condor, daquela pele morena, do cabelo liso e espetado, eu me perguntava porque a surpresa, se era isso que os seus pais alemães viam toda vez que olhavam o filho.
Como essas duas vezes, a qualquer momento, o núcleo quente de uma vida pode ser depositado no nosso colo. Eu o recebo sempre com reverência, ciente de nada ter feito para merecer tal entrega. E o guardo na memória, como um presente.