Estado de Minas M eu amigo fez 80 anos. Suas ex-mulheres mães de suas filhas, e suas filhas e maridos e filhos e até o bisneto celebrara...

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Nos anos 60, eu e boa parte dos convidados do jantar íamos três vezes por semana ao consultório do aniversariante, expor a vida e elaborar a psique. Era nosso conceituadíssimo psicanalista.
Tratou das cabeças mais pensantes e mais divertidas do Rio de Janeiro daquela época em que fazer análise era quase uma obrigatoriedade intelectual . E que época rica em cabeças aquela! Foi disso que mais se falou na festa, ao redor das mesas esparsas no jardim. Só na minha, estavam três atores, uma socialite, uma especialista em música e um escritor, todos antigos freqüentadores do mesmo endereço, os que haviam feito análise individual, e a maioria que havia caprichado também na análise de grupo. Ali, conversando entre amigos, tudo pareceu mais light e prazeroso do que naqueles dias, quando exorcizávamos nossos demônios, expúnhamos nossas fraquezas, e tantas vezes choramos.
Disse a ele ontem, brincando, que era um ótimo papel o seu, ficar ali recebendo de seus pacientes, em primeiríssima mão, os melhores projetos artísticos, os esboços das peças, o avançar capítulo a capítulo dos livros ou até das novelas de TV – eu própria tive uma companheira de grupo noveleira – , sem precisar ir a vernissage, estréia, ou noite de autógrafos.
Mas não eram tempos fáceis. Os que faziam teatro, cinema, os que escreviam ou eram jornalistas sofriam censura e repressão, havia alguns secretamente envolvidos na subversão. E chegou o momento em que nosso psicanalista, temendo que agentes da ditadura invadissem seu consultório para investigar os pacientes, devolveu a cada um seu prontuário com as anotações da sessões.
Esqueci, ontem, de contar aos companheiros de mesa um episódio curioso. Eu fazia individual há algum tempo, quando comecei a sentir sobre mim um peso estranho. Disse a ele, olha tem alguma coisa ruim, as portas estão todas trancadas à minha frente, não sou eu, é alguma coisa, algum trabalho que me fizeram. E ele, veja bem, Marina, isso aqui é análise, coisa séria, científica, não podemos lidar com esse tipo de possibilidade.
E passados uns dias, afastando minha mesinha de cabeceira para procurar algo que havia caído, encontro atrás, imprensada entre a mesinha e a parede, uma folha de papel com meu nome escrito a mão, e pingos de vela retendo fios de cabelo, e rasgos feitos com alguma faca ou ponta sobre meu nome. Enojada, botei o papel num envelope, levei para ele. A presença obscura pesou naquele consultório. O que fazemos com isso?, perguntei. Ele riscou um fósforo, e queimamos o achado ali mesmo, cientificamente.