Estado de Minas Q ue estupenda exposição essa que vi, de Sebastião Salgado, no Jardim Botùnico do Rio! Fui em busca da exposição que a i...

Estado de Minas
Obediente ao desejo de Salgado, vi em primeiro lugar o que ele queria que eu visse, a imponĂȘncia da natureza intocada. Tudo Ă© grandioso, as geleiras, as montanhas, mar e deserto, em grande angular e em detalhe. Tudo canta. O planeta, ou o que dele sobra puro, Ă© muito melhor do que nĂłs que o maltratamos.
Abro um parĂȘntesis: era dia de semana e a exposição estava cheia; muitos fotografavam as fotografias, com celulares ou com equipamentos mais sofisticados, e me lembrei de ter visto no jornal uma foto da noite de inauguração em que uma visitante fotografava um dos painĂ©is, e de ter pensado que ali estava tambĂ©m, oculto, um terceiro fotografo, o do jornal, numa moderna sequĂȘncia de captadores de imagens . Fim do parĂȘntesis.
Volto Ă s salas do Jardim BotĂąnico. Vi ali, alĂ©m do libelo ecolĂłgico ou como parte dele, uma exposição de olhares e gestos. O leopardo bebe agua e nos encara como nos encara o guerreiro primitivo de rosto pintado, o leĂŁo caça um antĂlope e o velho papua carrega a ave que caçou, mĂŁes de vĂĄrias espĂ©cies protegem sua cria num idĂȘntico abraço, uns fazem ninho, outros fazem casas. E os machos e as fĂȘmeas se seduzem, se acasalam, e criam seus filhotes de pelo, pluma, pele. As diferenças costuram a enorme semelhança.
Mas o olhar de quem vĂȘ Ă© mĂșltiplo como o de quem fotografa, e com meus olhos de gravadora vi uma exposição mais. A do preto e branco. Que mago Ă© Salgado, capaz de conseguir tanto com tĂŁo pouco! Dispunha de todas as cores do arco-iris, sedutoras como sereias, e as recusou. Sabia que o discurso seria mais severo e imponente sem elas.
Não quero falar das infinitas possibilidades do cinza, porque o cinza com suas escalas amacia, suaviza. E nenhuma concessão de suavidade acontece nessas fotos. Ao contrårio, hå uma precisão de lùmina, recorte impecåvel do escuro contra o claro, bisturi de branco sobre o negro. E a oposição entre esses dois oponentes/complementares entrega ao olhar uma profundidade bem mais intensa do que aquela fornecida pelos óculos de 3D, porque mais verdadeira.
Estamos acostumados e pensar fotografia como reprodução da realidade, registro fiel do que existe – quantas vezes ouvi dizer que jĂĄ nĂŁo faz sentido a pintura realista, se cĂąmara e lentes replicam com tanta perfeição. No entanto, ao fotografar a realidade, SebastiĂŁo Salgado lhe dĂĄ outra dimensĂŁo. Que distantes estĂŁo as samambaias da vida real, aquelas com que a gente cruza em qualquer selva ou mato, das que a lente transformou em arabesco, pluma, bordado. Ă como se Salgado usasse o preto e o branco para nos mostrar a transcendĂȘncia de cada coisa enfocada.
A foto emblemĂĄtica da exposição o demonstra: na mĂŁo espalmada da iguana, dedos abertos, em que cada escama se desenha nĂtida , Ă© impossĂvel nĂŁo pensar em nossa prĂłpria mĂŁo ancestral, aquela escamosa que saiu de dentro das ĂĄguas buscando a terra. A terceira visĂŁo possĂvel, a que me escapa, Ă© a que certamente tĂȘm os fotĂłgrafos. Para eles, capazes de analisar tĂ©cnicas e desvendar segredos, tudo hĂĄ de ter sabor de identificação e aprendizagem.