Estado de Minas H ouve um momento de areia fina como talco, e esse momento passou. Íamos até a praia de manhã cedo, muito cedo, as crianç...
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Estado de Minas
Houve uma primeira fatia de mamão – e pareceu-me ruim- uma primeira manga - e foi estupenda – uma primeira noite de verão nos trópicos, com grilos e jasmins, que nunca esquecerei e nunca poderei repetir.
Houve um primeiro amor na infância, um primeiro amor na adolescência, primeiros amores de juventude. Todo amor é primeiro, porque todo amor é único. E mesmo este meu amor que será o último é, antes de todos, o primeiro.
Houve um ferralhar de bonde na madrugada, e jovens em traje a rigor saindo dos bailes da formatura no centro da cidade, e eu entre esses jovens, arrepanhando a longa saia branca para subir no bonde com meu irmão, e voltar para casa sacudida sobre os trilhos, sentindo nos braços nus o ar ainda quente da noite. Dançar de rosto colado nos bailes era uma possibilidade, e o som da big band uma certeza.
Houve um momento de prova oral e estudo de latim. Os “pontos” que caíam eram dez, tiravam-se de dentro de um saquinho de pano como se numa loteria doméstica ou num bingo, e feliz era quem tivesse nome como o meu, começando por M, porque quando chegasse nossa vez já sabíamos quais eram as perguntas dos professores. As mais inteligentes iam à prova oral de biquíni por baixo da roupa, porque já tinham passado por média e saíam do colégio direto para a praia.
Houve o momento em que a primeira morte atravessou-se no caminho, mas, ao contrario do amor, só uma foi primeira, pois só com a primeira aprendi a viver. As outras nada me ensinaram, repetindo-se iguais, embora diferentes e com diferentes pessoas. Só a primeira me colocou diante da grande interrogação do nada. As seguintes, não mais.
Houve uma primeira embriaguês de réveillon, e foi primeira e última, porque não gostei nem durante, nem depois. Comi pão seco e bebi água no dia primeiro, curando ressaca como um santo purga seus pecados. E como um santo não voltei a pecar.
Houve momentos de férias, e dias inteiros passados entre sol e sal, para depois entregar o corpo à mansidão da água doce como se mergulha na tina o ferro em brasa. Havia andorinhas pousadas nas corninjas daqueles verões, e a água do mergulho era sempre mais fria em baixo do que em cima.
Houve uma lassidão que só a ausência de aulas permitia, um sono do corpo estendido em areia ou pedra, um hibernar ao contrário, olhos entrefechados, e o mar cintilando entre os cílios. Depois, nadar, nadar, nadar.
Houve essa outra cidade, esse outro corpo, esse outro espaço de verão. Agora, já não há. E é justo assim. O que era vazio foi tomado pela multidão, o que era elástico foi domando pelo desgaste, os trilhos de bonde dormem debaixo do asfalto, as bocas do metrô emergem nas calçadas, e se não há mais andorinhas no verão, tampouco há conrinjas.
Um ano veio e se foi, assim como se foi a areia de seda. O próximo ano chega e o recebemos expectantes, manga nunca provada. Todo momento passa e é só um momento. Nem os carros são todos pretos, nem a vida é mais do que momentos.