Estado de Minas M e dizem que houve um carnaval. Na casa de montanha, rodeada de verde, banhada por doces chuvas de fim de tarde, n...
Estado de Minas
Nela me refugio depois de ler o jornal. Se para mim é detestável ver bandos de homens de touca ninja e uniforme militar, fortemente armados, para Sei são “ detestáveis” : “as pessoas, sem dotes particulares, que sorriem ambiguamente, fazendo mexericos. (...)Pássaros que voam em bandos emitindo gritos agudos. (...)O amante, para quem a custo conseguimos um esconderijo, que começa a roncar ruidosamente.(...) O homem que, para visitar clandestinamente uma dama, pôs um grande chapéu na esperança de não ser reconhecido, mas que, entrando rapidamente, esbarra contra a porta e deixa cair o chapéu com um baque surdo.”
O jornal me informa que a Rússia está descaradamente invadindo a Criméia, enquanto Sei me diz como é desapontador “compor um poema que consideramos muito bonito e enviá-lo a alguém, sem receber outro em resposta. “Ou quando “ à espera de alguém, tendo há pouco começado a noite, ouves bater furtivamente à porta e com o coração agitado esperas que o servo te anuncie a sua chegada, mas não é ele, é outro, por quem não tens nenhum interesse.”
Da China, chega a notícia de que, numa estação, homens vestidos de preto mataram a facadas 28 pessoas. Para Sei chegava o requinte de “ um espelho chinês de prata levemente escurecida.”
Eram “coisas agradáveis” na corte de Kioto: “Conseguir escrever uma carta sobre papel chinês fino e imaculado, com caracteres delgados, apesar do pincel grosso. Trançar fios de seda brilhantes e coloridos. (...) A água que bebemos , quando à noite nos levantamos sedentos.”
Dessa poeta brilhante pouco se sabe. Na edição que tenho em mãos, diz o posfácio de Lydia Origlia: ”Da vida de um gênio a quem, se tivesse sido abrigado em corpo masculino , teriam sido tributados fama, altos postos na corte, e a honra de comparecer nas crônicas históricas da época, restam somente dados raros e nebulosos.” Não era bonita, isso sim sabemos, mas tendo a poesia no DNA – filha do importante homem de letras Kiyohara no Motosuke- cultivou o espírito crítico, o amor pela cultura e pela beleza. O espírito crítico lhe rendeu não poucos inimigos. O amor pela beleza e pela cultura fez dela a artista que admiramos até hoje. E os dois dons juntos levaram numerosos amantes ao seu leito. Não à toa o título original do seu livro é Notas do Travesseiro, e não da cabeceira.
“Delicioso é encontrar de manhã, junto ao travesseiro, uma graciosa flauta. Aquele que a esqueceu manda um servo buscá-la, e a envolvemos com cuidado em papel, quase se tratasse de uma carta dobrada, e a entregamos”.
Não tenho prazer especial em ser informada da volta de Gates ao topo da lista de bilionários. Prefiro ler que, indo ao templo da Iluminação, e tendo recebido um bilhete do amante para que voltasse logo matar sua saudade, Sei escreveu no lado avesso de uma folha de lótus: “O orvalho sobre as flores de lótus, que vou buscando/ poderei abandoná-lo para voltar ao mundo flutuante?”