Marina Manda Lembranças “N ão me encoxa que eu não te furo”, a advertência impressa num papel de uns cinco centímetros vem dentro de um...
Marina Manda Lembranças
Um alfinete não é uma espada, não é um punhal, não é sequer um canivete. É um símbolo.
No final do sec.XIX, nas pequenas aldeias rurais da França, ao fazerem 15 anos as moças eram mandadas à casa da costureira, onde aprenderiam a profissão enquanto catavam os alfinetes. Mas fazer 15 anos significava também a permissão para ir dançar e namorar, e querendo namorar uma moça, o rapaz lhe oferecia algumas dúzias de alfinetes. Do mesmo modo, as moças jogavam alfinetes na fonte para que estes lhe trouxessem bons namorados. A ligação simbólica do alfinete e do sexo é clara, embora não houvesse nas aldeias nem metrô nem ônibus apinhado.
Vamos dar uma olhada freudiana no alfinete? Não, um alfinete não é um pênis. Não serve para a reprodução, nem tem uso para o prazer a dois. Quando, porém, o pênis é usado como agressão, o alfinete se torna seu correspondente simbólico, ferrão capaz de penetrar em carne alheia fazendo gotejar sangue e dor.
O kit defesa é uma advertência. E, pelo menos, chamou a atenção da mídia.
Mas a mídia, distraída pelo erro na pesquisa do IPEA, passou distraída por outros resultados assustadores apontado pela mesma pesquisa. Resultados que, no final das contas, têm a ver com a prática do encoxo.
65% dos entrevistados concordam com a frase: “Mulher que é agredida e continua com o parceiro gosta de apanhar”. 78,7% concordam com “O que acontece com o casal em casa não interessa aos outros”. E 81,9%, ou seja, a quase totalidade acha que :”Em briga de marido e mulher , não se mete a colher”.
É como se todas as matérias, todas as advertências, todas as personagens de novelas enfocando o problema da violência contra as mulheres nunca tivessem existido. É como se as estatísticas brasileiras de violência contra a mulher não nos cobrissem de vergonha. E se basta uma porta domestica fechada para legitimar a violência, porque se veria inibida no aperto anônimo de um ônibus ou vagão?
Há jovens machos se vangloriando na internet, saindo para encoxar como quem vai à caça. E não podendo pendurar o troféu na parede da sala ou do quarto, o estampam nas telas, agregando, quando possível, a foto da vitima. Alguns vão em grupo, marcam “rolezinhos” de agressão, a serem comentados depois em mesa de bar. Comentarão também as picadas de alfinete?
Pois eu posso me orgulhar de uma tia precursora. Chamava-se Mariquita Flores e, embora sendo minúscula, era uma grande bailarina de flamenco. Até morrer em idade tardia deu aulas no Metropolitan de Nova Iorque, formando toda uma geração em dança espanhola. Vivia ela no Rio no início da década de 50 — quando ainda as senhoras elegantes saíam de chapéu — e estando em um ônibus rumo ao centro — as senhoras elegantes ainda andavam de ônibus — sentiu a mão do cavalheiro ao seu lado — não tão cavalheiro — avançar sobre a sua coxa. Não hesitou. Tirou o enorme alfinete que lhe prendia o chapéu — daqueles que tinham uma pérola em lugar da cabeça — e o cravou na mão do indigitado. Que certamente não se gabou disso com ninguém.