Marina Manda Lembranças E ntrei no avião, o homem já estava sentado, janela. Ia ser uma viagem longa. Olhei para ele ao cumprimentar, home...

Marina Manda Lembranças
Na hora do jantar, bandeja vai, bandeja vem, começamos a costurar conversa. Me disse ser matemático, francês. Falava português com bastante fluência. Depois falamos de viagens, cidades. E acabado o jantar, comecei a ler um dos livros que havia levado. Ele continuou olhando para a frente, até apagar a luz e dormir.
No dia seguinte, ligou a TV. Não escolheu nenhum dos inúmeros programas e filmes oferecidos, mas durante um bom tempo manteve na telinha as informações que vão se alterando à medida que o avião avança, altitude, temperatura externa, distância até o destino, tempo de vôo até o destino, etc... Olhava com atenção. Quando desligou, pegou um jornal que havia trazido e o manteve fechado e dobrado sobre a perna. Novamente olhava para a frente, e só de vez em quando anotava alguma coisa nas beiras do jornal. Indiscreta, olhei. Eram equações ou similar, números, chaves, símbolos.
Percebi então meu engano. Ele não era apático, nem havia estado distraído ou olhando coisa alguma. Olhava seu invisível universo matemático, dialogava internamente com números como outros dialogam com palavras, resolvia problemas que só cálculos podem resolver. Por isso olhava somente a tela das informações, porque era a única cheia de números, a única que falava sua mesma língua.
Sorridente, mergulhei outra vez no meu livro. Tentava adiantá-lo antes de chegar, porque aonde eu ia certamente compraria outros.
Dias depois, na volta, tive como companheiro de viagem meu doce amigo Rui de Oliveira, belíssimo ilustrador. Havíamos conversado muito durante as longas esperas de aeroporto, falando de arte, de desenho, comentando a estupenda exposição das ilustrações de Ugo Fontana que ambos havíamos visto na Feira — vínhamos de Bologna.
No avião sentamos cada um numa ponta da fileira de quatro assentos, os dois intermediários estavam vagos. Mal levantamos vôo, Rui sacou de sua grande bolsa — quase um atelier portátil — um bloco de desenho, depois canetinhas. E começou a desenhar.
De vez em quando, eu levantava a cabeça do meu livro e olhava, agora não indiscreta mas amiga. Na folha branca, um discurso que só não era imprevisível para o artista, ia sendo traçado.
Hora do jantar, bandeja vai, bandeja vem, conversamos um pouco , debruçados um em direção ao outro por cima dos assentos vagos. Eu queria saber que canetinha, que papel, que loja de material. E voltamos a falar de arte. Findo o jantar, ele pegou na bolsa o livro/catálogo da exposição de Ugo Fontana, que ambos havíamos comprado, e leu até a hora de dormir.
Retomou o desenho na manhã seguinte. Olhei. Duas personagens habitavam agora a folha branca, Rui começava a terceira. Ainda faltava um bom tempo para chegarmos ao Rio, daria para ele acabar.
Daria também para eu acabar meu livro. E anotar na caderneta: “ lembrar para crônica — três universos distintos/números/ traços e cores/palavras."