Marina Manda Lembranças P ela segunda vez, volto da exposição de Ron Mueck , no MAM, sem ter conseguido entrar. Havia uma multidão, fil...
Marina Manda Lembranças
Não era o público que costuma freqüentar galerias de arte. Era uma outra gente, convergência de todas as tribos. Muitas crianças, famílias inteiras, grupos de jovens, e mais mulheres do que homens. Aproveitava-se o feriado, chupava-se sorvete e comia-se pipoca, ia-se ao museu como se vai ao Holiday On Ice ou ao Cirque Du Soleil, um evento a não perder.
Ao longo dos anos, tenho encontrado as obras de Ron Mueck em outras circunstâncias, outros museus. E cada vez me detive longamente diante delas. Não é um artista a cruzar na indiferença.
Os livros de arte, ou mesmo o Google, o definem apenas como escultor hiper-realista, capaz de reproduzir com precisão absoluta os mínimos detalhes do corpo humano, precisão que a escala gigantesca torna ainda mais impressionante.
É essa precisão o atrativo principal para aquele mundaréu humano com que me deparei. Suas esculturas propõem uma espécie de mistério a decifrar, “como ele conseguiu isso?”, e mistérios são sempre muito sedutores. A boa imitação seduz mais que o modelo. Proponho, porém, uma outra leitura.
Mueck apropriou-se inicialmente da técnica de reprodução modelando marionetes e modelos para o cinema, a televisão e logo para a publicidade. A perfeição era um requisito do negócio, e ele era um dos melhores da profissão. Desejava, porém, fazer algo mais com aquilo em que já se sentia mestre. E então conheceu Paula Rego. Mais do que conheceu, tornou-se seu genro.
Paula Rego é uma esplendorosa pintora portuguesa. Figurativa em tempos de abstracionismo, suas personagens são impactantes pela força, e o seu pleno conhecimento da anatomia tensiona corpos majoritariamente femininos. Mueck realizou com ela um trabalho, esculpindo figuras pequenas para completar uma composição. Sua capacidade imitativa tornava-se arte. Logo, Paula o apresentou ao grande galerista Charles Saatchi, com quem ela própria já trabalhava.
Foi nesse pulo do gato, creio, que a precisa reprodução dos detalhes mudou de sentido. Se antes era feita para enganar — marionetes e modelos deveriam parecer vivos — agora se transformava em linguagem.
Os seres humanos de Mueck , são despidos de alegria. O Jovem Casal esculpido especialmente para esta exposição é tão tristonho quanto o famoso Couple Under The Umbrella. A mãe recém parida que olha seu bebê mais o interroga do que o acolhe, a mulher grávida que ergue os braços não sorri, nem está feliz o célebre casal de turistas com câmara fotográfica pendurada no pescoço. Ele próprio se retratou dormindo, um rosto apenas, de olhos fechados para a vida exterior. E a primeira vez que vi aquele seu homem nu, encolhido num canto, não me surpreendeu seu gigantismo, doeu-me seu medo.
A perfeição dos detalhes nas esculturas de Mueck serve para que nos vejamos nelas, para que vejamos a espécie humana inquieta e defendida, cheia de desconfiança, que nos tornamos. Não à toa a peça que abre a exposição é uma galinha morta, pendente, com o titulo irônico e significativo de Natureza Morta. Mueck se inscreve assim, com Bacon, Lucien Freud e a própria Paula Rego, no restrito grupo que, em plena atualidade, usa a figuração não como reprodução, mas como crítica.
Quanto à escala, é um viés da pós modernidade. Para mim, as esculturas de Mueck teriam igual intensidade se fossem miúdas como os netsuquês, antigas miniaturas japoneses entalhadas em marfim ou madeira.