Marina Manda Lembranças L igo a TV italiana, Rai, e me deparo com um belíssimo homem andando sobre um fio bem acima do chão. Não é um fu...

Marina Manda Lembranças
Saio da Rai, vou para uma estação americana, vejo cinco cozinheiros e seus assistentes enfrentando o júri severíssimo que acaba de provar o prato preparado. Se for para a televisão tupiniquim posso encontrar a confrontação pelo titulo de melhor cantor, se zapear mais darei de cara com um jogo que seleciona bandas, e é certo que em algum país do mundo está ocorrendo o famoso “Dançando com as estrelas”. Isso, para não falar nos programas de perguntas, nos reality, na programação esportiva que constantemente acompanha campeonatos de todas as modalidades.
A televisão tornou-se o território das disputas. Queremos ver quem ganha e quem perde, participar dos preparativos nos bastidores, torcer como se de fato conhecessemos aquelas pessoas. Toda noite, sentamos na sala depois do jantar, ligamos a máquina, e eis que estamos nos lugares mais bem localizados do Coliseu, olhando com deleite o enfrentamento de alguns gladiadores, enquanto outros se preparam nos subterrâneos escuros do circo. Um ou outro rugido de leão só torna a diversão mais prazerosa.
Entretanto, ao chegar em casa poucas horas antes, reclamávamos justamente do estresse no nosso lugar de trabalho, da luta surda entre colegas, da indecente tentativa de escalada de uns e outros em busca do favor do chefe, e das próprias manobras escusas do chefe para obter uma promoção ou colocar-se em boa luz dentro da empresa. E de manhã ao ler o jornal havíamos reclamado dos políticos, ah! os políticos, bando de lobos enfiando os dentes na jugular um do outro, cada um defendendo o seu e só pensando na reeleição. E havíamos comentado a guerra em andamento e franzido a cara de horror diante da última explosão terrorista.
Todo dia, vestimos nosso saiote de gladiador, botamos nosso elmo, pegamos a rede e o forcado, e tomamos a condução rumo ao trabalho. Toda noite voltamos desgastados, mas com a sensação de ter matado o leão, de ter escapado dos punhais alheios.
Por que então, ver encenada a mesma disputa traumática nos alivia e diverte? Não sei a resposta. Pode ser um mecanismo em que a couraça que nos pesava tanto é despida e passada para outros, para aqueles outros fantasmáticos que habitam nas telas e passeiam sobre tapetes vermelhos. Pode ser uma transferência em que nós somos o ganhador, qualquer ganhador, e é nosso o troféu, o Oscar, a bolada, nossas são as palmas. Os outros, os que perdem, não somos nós; estivemos próximos deles em algum momento durante a disputa, durante a partida, durante o concurso, mas a proximidade se desfez junto com a derrota.
Vencer toda noite, e até mais de uma vez, talvez seja a fórmula moderna para agüentar, no dia seguinte, pegar rede e forcado, e sair rumo ao trabalho sem saber de quem será a vitória.