Marina Manda Lembranças E u conheci um homem bom. Mais que isso, fui amiga, a melhor e mais antiga, de um homem bom. Tinha pés en...
Marina Manda Lembranças
Tão rara é a bondade — e eu poderia dizer que mais rara entre os homens, se não soubesse da estrutura social que se esforça para fabricar mulheres “boazinhas”, enquanto se orgulha de seus homens aguerridos — que nem sempre a reconhecemos pelo que é. Do meu amigo Tomasz Barcinski ouvi muitas vezes dizer que era um cândido, um naif, um eterno jovem, mas agora digo alto e claro, era um bom.
Se penso nele, volto ao começo, quase à inauguração dos anos 50, a um Leblon ainda sem grandes prédios e sem cinemas, de pouca gente e de comércio modesto, um Leblon adolescente como nós que acabávamos de nos conhecer. Ele morava na praça Antero de Quental, eu na esquina da praia com Bartolomeu Mitre. Ele, com sua família, recém chegava da Polônia, eu, com a minha, da Itália. Havíamos atravessado a Segunda Guerra, o pai dele como resistente, o meu como fascista. Tínhamos modos diferentes dos outros adolescentes, e uma história mais funda no olhar. Com a amizade, fomos desgastando os respectivos sotaques.
Digo que era um bom, e conto um episódio familiar, passível de entrega agora que todos os participantes já morreram. O pai de Tomasz era um gentleman europeu, charmeur de outra estirpe, elegante sempre, mas pouco eficaz nas lutas do cotidiano. Passam os anos. Viuvez, desemprego. Tomasz, bem sucedido, arruma discretamente um emprego para o pai. Logo, porém, fica sabendo que este não consegue cobrir a cota — creio que de vendas — necessária para a manutenção no posto. Tomasz procura os empregadores, se oferece para pagar ele próprio o que falta às cotas do pai, mas exige que isso nunca lhe seja revelado. “Morreria de vergonha se soubesse” — me disse ao relatar o caso. E até a morte o pai acreditou estar indo bem no emprego.
Era um eterno jovem, meu amigo? Talvez, e que prazeroso pode ser isso. Mais adiante naquela mesma década de 50, quando já éramos jovens e do Leblon havíamos migrado para o Arpoador, todos nós tivemos Lambreta, como um distintivo ou um clube. Aos poucos, fomos abandonando as duas rodas, preferimos carro. Tomasz também teve carro mas, até ser abatido na semana passada por um câncer no cérebro, circulou feliz por Ipanema de motoneta.
Em plena carreira, alto executivo de uma empresa, demitiu-se para cuidar da mulher quando esta ficou doente. E cuidou dela com dedicação absoluta. Depois, viúvo e desempregado, quis inventar para si uma nova vida. Me telefonava no princípio, buscando seu caminho, mas depois que o achou não precisou mais dos meus conselhos, e passamos a nos falar para comentar os resultados da sua escolha. Havia-se tornado tradutor.
Trouxe para o português as obras mais importantes da literatura polonesa. Era um duplo patriota, que agitava com igual entusiasmo bandeiras do Brasil e da Polônia. Mas a Polônia o reconheceu, e poucas semanas antes dele morrer lhe conferiu a mais importante condecoração cultural do país.
Nunca o ouvi falar mal de ninguém. Frente a relatos escabrosos da vida alheia escancarava seus pequenos olhos azuis, surpreso, como se o que ouvia fosse impossível.
Desse homem bom e alto, desse primeiro amigo insubstituível, escolho para me despedir o sorriso cúmplice e guloso com que, de volta de uma viagem à Polônia, me confessou ter trazido na mala cinco quilos de chocolate, o chocolate sem igual da sua terra.