Marina Manda Lembranças A ntes que se celebrasse, em 2005, o IV Centenário da publicação de D. Quixote, foi formado na Espanha um grupo d...

Marina Manda Lembranças
Quixote havia sido um dos heróis mais íntimos da minha infância, graças a uma adaptação italiana. Em nossas brincadeiras, fui alternadamente Dulcinéia e Sancho Panza, enquanto meu irmão ficava com o papel do Cavaleiro. E qualquer cavalo magro havia se tornado para nós um Rocinante. Temendo romper essa intimidade amorosa, atravessei a vida adulta sem me atrever a ler o original. Até chegar à tradução.
Pareceu-me impossível meter a mão em material de origem tão preciosa, sem saber ao certo o que era de Cervantes — e portanto intocável —, e o que era do adaptador — e consequentemente passível de alterações. Rompi a resistência, e fui ao mestre.
Constatei, então, a excelência do trabalho de Agustín Sánchez Aguilar. Usar o espanhol quinhentista de Cervantes inviabilizaria a leitura para qualquer criança moderna. Mas, utilizando uma linguagem atual, sem deslizes de gírias ou modismos, Aguilar manteve absoluta fidelidade ao conteúdo e ao espírito da obra.
Conto isso, levada pela polêmica em torno da nova adaptação de O Alienista, de Machado de Assis, e sem pretensão de botar mais lenha na fogueira. Digo apenas que quando tinha cerca de 7 anos, uma coleção de adaptações de excelente qualidade despertou em mim a paixão leitora, marcando para sempre minha vida. Tantos anos mais tarde, quando reli Poe, não encontrei o mesmo estupendo pavor provocado por aqueles enterrados vivos que na minha memória seguiam raspando com as unhas o caixão lacrado. E quando reli Homero, o cavalo de madeira havia ganho em nobreza, mas já não me levava no ventre. Nunca mais pertenci ao bando de Robin Hood, nem cacei baleias ou me evadi da ilha de Monte Cristo. E se, tantos anos mais tarde, escrevi o conto de um rei de rosto coberto por uma máscara de ferro, foi porque conservava outro na lembrança.
Levada pelas polêmicas sobre adaptar ou não adaptar Machado, fui dar uma olhada em outras adaptações de O Alienista, e acabei dando de cara com o filme Azyllo Muito Louco. Louca, de fato, e adorável essa adaptação cinematográfica de Nelson Pereira dos Santos. Lançada em 1970, deve ter sido filmada um ou dois anos antes, já não tenho certeza da data nem posso dizer com segurança se foi em Angra ou Parati. O que lembro claramente são os relatos familiares dando conta de que um fumo danado rolava no valhacouto — assim nomeada a casa que abrigava a equipe — e a loucura geral era algo mais do que apenas encenação. Um clima certamente de acordo com aqueles anos doidos, e propício ao tema central do filme.
Agora, reencontro todos vivos na internet, vestindo trajes de outro tempo. Vejo Leila Diniz e seu rosto de menina, Isabel Ribeiro com seu nariz afilado, Nildo Parente sempre pausado, meu irmão Arduino, meu pai Manfredo. E penso que também as adaptações, quando são boas, ficam.