Marina Manda Lembranças E la não sabia quanto era bonita. Nem poderia. Seu rosto não se assemelhava aos rostos da modernidade, aqueles ...

Marina Manda Lembranças
O cabelo ruivo claro, preso atrás numa espécie de nó displicente, deixava livre a linha delicada da nuca. E logo acima sobressaiam-se as orelhas, de um rosa tão mais vivo que o resto. O nariz, sim, o nariz era decididamente mais longo que o devido. Não muito, mas quanto bastava para fazer com que os olhos parecessem mais unidos do que realmente eram, olhos de um azul pálido que quase não era cor, e que resultavam mais desprotegidos porque franjados por pestanas curtas e cor de trigo.
O rosto daquela jovem mulher pertencia ao espaço flutuante entre a Idade Media e a Renascença, recém saído do alongamento ascético das figuras e já rumo ao arredondamento da carne. E ela estava com uma bebê. Uma bebê e uma menininha.
No restaurante apinhado, televisão ligada em jogo da copa, todo mundo de nariz para o alto sugado pela telinha, eu olhava para elas. Sempre me seduz o modo macio e natural com que as fêmeas de qualquer espécie tratam seus filhotes. Ali não era diferente.
Havia uma outra mulher, também jovem, provavelmente irmã embora morena e moderníssima, ou talvez amiga íntima. E as duas se revezavam com as crianças.
Nenhuma hesitação nos gestos, nenhuma insegurança. Era dar comida, embalar de leve, passar a bebê dos braços de uma para os braços da outra, tudo fluido, em absoluta continuidade. O atender e o brincar se alternavam semelhantes, como se fossem uma mesma coisa. E eram.
Havia também um pai naquela mesa, jovem, musculoso, atento à TV. Parecia ter pouco a ver com as crianças, mas só porque um valor intenso e imediato o ocupava. E quando, em dado momento, lhe entregaram a bebê, exerceu o afeto a seu modo.
Um modo nada macio, mas amorosamente prorrompente. Mantinha a filha em pé passando-lhe o braço pela cintura, não sem força. E ela retida mas sentindo-se segura, se debruçava para todos os lados, explorando a mesa com as mãozinhas, enquanto o pai olhava o jogo. Não demorou, e a pequena conseguiu apropriar-se do serviço americano de papel e o amassou e começou a metê-lo na boca, do que o pai se aproveitou para inventar uma brincadeira de papel farfalhante quase esfregado no rosto. Ela ria, encantada com a novidade e com aquele mínimo aprendizado de liberdade. Depois se assustou, e ele então afastou o choro fazendo uma careta ruidosa.
As mulheres voltaram do toalete, a mãe pegou a filha no colo, aconchegou-a para dormir, cobriu-a com um pano que talvez fosse sua canga. Debaixo da tenda colorida, aquela aprendiz de pessoa não tinha ainda meios para analisar as variantes amorosas no tratamento de pai e mãe. Mas tinha, ah se tinha!, ampla capacidade de assimilar uma e outra , e necessitar das duas.
Menos de uma hora depois revi a família, dessa vez no supermercado próximo ao restaurante. Só então percebi que a mulher antiga estava grávida. Alguns meses mais, e uma nova criança entraria na roda do afeto.