Marina Manda Lembranças E u vi um homem de pé, diante da portaria de um prédio elegante, olhando- se. Era manhã bem cedo e o homem, um m...

Marina Manda Lembranças
Eu vi um limoeiro carregado de frutos, despontando por cima da cerca do terreno baldio onde ninguém os colheria. Eram limões galegos, e cintilavam com sua viva cor de laranja, pequenos sóis acesos em meio à cinzenta balbúrdia da cidade.
Eu vi, na feira, um homem descascando alho com os dentes. Levava o alho à boca, arrancava-lhe a casca, e o depositava junto a outros já prontos, sobre um tabuleiro. Só depois percebi que ele usava sempre a mesma mão, porque a outra pendia inerte junto à perna igualmente enrijecida.
Eu vi a mensagem cuidadosamente pintada em um quadro de madeira emoldurado, que devia ter uns vinte centímetros de lado. Trazia abaixo, a lápis, uma assinatura em letra infantil, o nome de uma escola, e a indicação, 5º ano B. Dizia: “Salve a Natureza”. E estava pendurada numa árvore, por um prego.
Eu vi dois pássaros azuis pousados sobre duas fatias de mamão, lado a lado. Como se fossem telecomandados ou tivessem ensaiado, davam umas bicadinhas, e de repente levantavam a cabeça, olhavam juntos para a esquerda, tornavam a bicar, olhavam para a direita, bicavam novamente. Tudo em sintonia. Faltando apenas a música para que fosse um ballet, os dois alternavam a entrega à fome, e o constante estado de alerta e de defesa.
Eu vi um homem sentado no chão ao ar livre, na mansa grama do Quadrado, em Trancoso, lendo a Bíblia. Passei por ele. E porque era domingo, e desconfiou que eu fosse ímpia, levantou-se tentando a catequese. O dia cintilava como uma graça de Deus. Talvez por isso, e aproveitando os minutos que lhe dei, disse de repente abrindo os braços: ”Veja a beleza da obra do Senhor, que nos fez à sua imagem e semelhança”. Como o mendigo da portaria, ele havia encontrado um espelho que lhe melhorava a imagem.
Eu vi pescadores, no Japão, concentrados em seus caniços ao redor de um lago. Cada vez que fisgavam um peixe, eles o soltavam meticulosamente do anzol e o devolviam à água. Usavam luvas brancas de algodão, e até hoje me pergunto se para evitar o cheiro nas mãos, ou para não contaminar peixes e lago.
Eu vi dois homens tomando banho num chafariz, em plena Copacabana. O mais moço era ainda um projeto de homem, e ainda assim o mais cuidadoso no higiene. Passava e repassava o sabonete, espremeu com capricho o envelopinho de shampoo – talvez sobra do hotel ao lado- e longamente espumou a cabeça. O mar estava ali à frente, mas água salgada não serve para quem quer banho de esguicho e perfume. Serve o sol, como toalha.
Eu ouvi um canto religioso entoado alto no banheiro público. O Senhor era louvado com entusiasmo entre pias e privadas. Saí do meu cubículo. A faxineira gorda, boca fechada, passava pano úmido no mármore. Perguntei se era ela que cantava. “Ah, sim!- respondeu abrindo um sorriso amplo como seus quadris- cantar faz bem. E Deus se alegra.” Deus pode até não ter ouvido a cantoria, mas certamente se alegrou com a frase.