Marina Manda Lembranças S urpreendente é a capacidade expansiva de um pensamento. Vai a pessoa tocando normalmente os múltiplos elemen...
Marina Manda Lembranças
Não estou me referindo a ideias grandiosas, a maçã caindo na cabeça de Newton e revelando-lhe a lei da gravidade, Aristóteles gritando Eureka! ao perceber que deslocava a água na banheira. Falo de coisas comezinhas, pensamentos que se apresentam modestos e aos quais não damos importância inicial, mas que na morna escuridão do pensamento levedam, crescem, logo partindo para a dominação total.
A pessoa está sentada no sofá da sua casa, o mesmo em que se senta há mais de uma década. Quase distraída, pousa o olhar sobre a mesa de centro. E eis que aquela mesa com a qual está tão acostumada, com a qual sempre se deu tão bem, subitamente eriça o pelo. O olhar antes distraído se faz crítico, a mesa antes ótima lhe parece subitamente grande demais para o ambiente. Estabelecida a rejeição, a pessoa avança visualizando o espaço sem aquela mesa agora inconveniente, imagina outra menor em seu lugar. E gosta, gosta muito do que vê. A partir daí, a busca de uma nova mesa será a rainha do seu desejo. Olhar focado em páginas de decoração, pesquisas nas vitrinas, buscas em lojas e em feirinhas de antiquariado, análises complexas das mesas alheias ocuparão seu tempo e seu imaginário. A mesa de centro que lhe pareceu grande demais na sala fez-se muito maior no pensamento.
Já desejei estudar alemão. Até comecei. Parei, não porque não gostasse, nem porque me parecesse excessivamente difícil. Parei porque percebi que aquelas palavras, aquelas estruturas linguísticas estavam se dilatando, e qualquer frase simples do livro para iniciantes, repetida mentalmente infinitas vezes, acabava ocupando o espaço de frases bem mais úteis para o meu cotidiano. Era como se, para aprender alemão, eu precisasse deixar a seu dispor todos os meus neurônios.
Tive, na faculdade, um professor de anatomia que desejando aprender russo utilizava um método de sua invenção. Já até escrevi sobre ele. Todo dia, anotava cinco, ou talvez dez, vocábulos novos num cartãozinho que levava no bolso. Intermitentemente, sacava o cartão, dava uma olhada, e o recolocava no lugar. Durante o dia inteiro. Ã noite, memorizado o conteúdo do cartão, preparava outro com novos vocábulos. Saí da faculdade. Anos mais tarde me disseram que o professor havia enlouquecido. Mas pode ter sido aleivosia de ex aluno.
Agora, impulsionados pela publicidade e as redes sociais, já não se trata apenas de pensar o tempo todo em alguma coisa, trata-se de todos pensarem ao mesmo tempo a mesma coisa.
Foi o que aconteceu com a Copa. Durante semanas nossas vidas foram seqüestradas por um único pensamento, um único desejo coletivo metodicamente alimentado. Ficou difícil pensar em qualquer outra coisa, levar adiante a normalidade. Como meu professor de anatomia, verificávamos intermitentemente tabelas, feriados, horários. Até terça.
Tive que sair ontem de manhã, cedo. Nas mesmas ruas de Ipanema que no dia anterior pareciam uma extensa plantação de girassóis, não havia uma única camisa amarela.
Foi o que aconteceu com a Copa. Durante semanas nossas vidas foram seqüestradas por um único pensamento, um único desejo coletivo metodicamente alimentado. Ficou difícil pensar em qualquer outra coisa, levar adiante a normalidade. Como meu professor de anatomia, verificávamos intermitentemente tabelas, feriados, horários. Até terça.
Tive que sair ontem de manhã, cedo. Nas mesmas ruas de Ipanema que no dia anterior pareciam uma extensa plantação de girassóis, não havia uma única camisa amarela.