Marina Manda Lembranças F im de tarde, vinham as duas pela calçada, de braço dado. Não por jovial amizade, mas em busca de apoio. Andava...
Marina Manda Lembranças
Conversavam em voz alta, certas de estarem apenas murmurando - imaginei que, meio surdas ambas, haviam se estabelecido nesse registro. E quando nos cruzamos no passeio, ouvi claramente a mais humilde dizer “A senhora não se lembra, mas eu antigamente...”.
A frase me encheu de ternura. A acompanhante de tantos anos sabia bem que a memória havia abandonado sua patroa e, ainda assim, era o dialogo que lhe restava. Estavam juntas desde aquele “antigamente”que a mais velha, ou mais fraca, havia esquecido. E a outra tentava manter vivas suas lembranças contando-as para alguém que mal podia lhe prestar atenção e que há tempos havia apagado as próprias.
Minha amiga era gorda. Linda, brilhante, e gorda. Não abundante em carnes, gordinha apetecível. Obesa. Leva-se tempo para chegar a essa qualificação. No caso dela haviam sido anos de boa comida, de um tanto mais a cada refeição, de ligeiras facadas ao subir na balança. Aos poucos. Bem devagar. E era tão lindo o rosto, tão exuberante o temperamento e bem sucedida a vida, que acreditávamos estivesse acostumada com seu peso.
Não estava. Um belo dia — belo, de fato — anunciou: faria bariátrica. E eis que quando a vi novamente havia perdido o equivalente a outra pessoa. A sua exuberância parecia mais bem instalada nesse novo corpo flexível, a idade havia dado um salto para trás.
Ao contrário de muito gordos que emagrecem, minha amiga não teve nenhuma dificuldade em se adaptar à magra imagem com que se encontrava no espelho. Pelo contrário, estava radiante. E para expandir ainda mais o sorriso, inventou um pequeno estratagema. Agora,quando vai a alguma loja comprar roupa – e compra mais roupa já que lhe cai tão bem — pede à vendedora um tamanho G. Que veste, na cabine, só para ter o prazer de vê-la sobrar ao redor do corpo, e poder então, triunfante, chamar a vendedora e dizer que ficou largo, por favor, lhe traga um tamanho M.
Vínhamos chegando ao meu prédio, quando vi uma moradora fotografando as orquídeas em flor no tronco da árvore junto à portaria.
Moro em Ipanema e, há alguns anos já, estabeleceu-se um costume encantador. Quando alguém ganha um vaso de orquídeas – e é freqüente, porque a orquídea é flor nobre e tornou-se mais desejável que as rosas, de menor duração – desfruta sua beleza durante as semanas, até meses, em que continuam floridas. Depois, não tendo uso no apartamento para a planta desguarnecida, a entrega ao porteiro. Que armado de escada, a prende na parte alta do tronco da árvore mais próxima, onde tornará a florescer. Assim, agora, quem anda pelas ruas de Ipanema, vai por um corredor tropical de pétalas, perfumes, e encantamento.
Estava, pois, minha vizinha de câmara na mão. E porque elogiamos seu gesto, nos entregou o resto da história.
Mora no prédio há mais de 40 anos. E todos os anos, no aniversário de casamento, seu marido lhe dá de presente um vaso de orquídeas. Conservá-los não pode. Então, pede a alguém para prendê-los nas árvores. Mas não os abandona. Quando florescem pela primeira vez, os fotografa. “Tenho todos guardados “, me disse sorrindo. E agitou a câmara como se me mostrasse um cofre de jóias.