Marina Manda Lembranças V ocê está andando na rua. Há uma janela ao alto. Há sempre janelas ao alto se você anda na rua, qualquer rua, ...
Marina Manda Lembranças
E no entanto, era bom debruçar-se à janela. Quando o português Antonio Clemente Pinto, Barão de Nova Friburgo, comprou uma casa na Rua do Catete e a demoliu, pretendia fazer uma mansão no centro do enorme terreno que ia até a praia. Chegou a plantar fundações. Mas a esposa exigiu que a nova casa se erguesse logo a partir da calçada, janelas aberta para a vida da cidade. Não podia prever que em 1897 a mansão seria transformada em sede do Governo Federal, e que a partir daí ninguém mais olharia para fora. O lado de dentro havia-se tornado bem mais importante.
Janelas eram mais loquazes que portas. A porta só servia à passagem, a janela, à permanência. As avós, as mulheres que já não tinham serviços domésticos, ali se empoleiravam, algumas com almofada no rebordo. A dona da casa, depois de limpa a cozinha, chegava-se à janela, percorrendo a rua com o mesmo olhar organizador com que havia conferido o louceiro e o fogão. A moça ia à janela pentear o cabelo depois do banho, olhando a chegada da noite como se olhasse no espelho.
Ainda peguei o tempo das venezianas e, enquanto houve venezianas, houve uma espécie de convite. Abriam-se os batentes de manhã, e o próprio gesto levava a uma mínima parada, recepção do novo dia, conferência da ordem estabelecida pela luz. Fechavam-se os batentes à noite, e pela fresta formada antes de girar o trinco, dava-se um último olhar de despedida. Não há mais venezianas, há cortinas. Que não se abrem nem se fecham, estão ali quietas, quase parentes das paredes. Ou se abrem e fecham em lâminas, apenas girando a ponta de uma haste. E ninguém mais se debruça.
A janela foi substituída. Se aquela tradicional perdeu seu papel social – olho da casa aberto sobre a comunidade - , se serve apenas para deixar entrar ar e luz, se a rua parece distante lá embaixo, e se quem passa não se interessa por nós, abrimos outra janela, no quarto ou na sala, cheia de luz e cores, cheia de vida alheia, rica de paisagens, mais igual a si mesma que uma folhinha, mais cheia de ensinamentos que um almanaque, tão disponível quanto o tempo. E sobre ela nos debruçamos encantados, sabendo que nos espiona mas não nos critica.
A televisão tornou-se nossa janela. Se queremos saber que tempo fará à tarde ou amanhã, nada de olhar o céu, farejar o vento ou estudar as nuvens. A “moça do tempo” – sempre uma moça para suavizar as previsões- nos conta tudo o que queremos saber. Se ouvimos um tiroteio na esquina, esperamos que o noticiário do dia seguinte nos diga o que aconteceu – é mais seguro. E nem precisamos aguçar ouvido e olhar para saber o que acontece com os outros, nossa janela nos conta. Quando não conta, é sinal inequívoco de que as personagens não valiam a pena.
Esta semana tivemos noites de super Lua. Saí no terraço, noite alta, para viver o esplendor da sua luz. Olhei os prédios ao redor. Não havia ninguém à janela.