Marina Manda Lembranças E m final de novembro de 1992, a socióloga e senadora Eva Blay se preparava para subir à tribuna e defender a lib...

Marina Manda Lembranças
Quatro anos mais tarde, uma representação da bancada feminina na Câmara, liderada pela então deputada Marta Suplicy, lutava para priorizar no segundo semestre a votação de projetos que ampliavam as situações em que o aborto poderia ser feito legalmente no país. Mas o direito a aborto por malformação do feto só seria obtido em 2012.
Olho esses dois recortes tirados quase aleatoriamente do meu arquivo, olho, a seu lado sobre a mesa, dois recortes de sexta e sábado passados, relatando as investigações do caso Jandira, e não sei se o que me toma é revolta ou desalento. Essas questões, pelas quais batalhamos tanto nos anos 70 e 80, andam no Brasil a passos de cágado.
Não deixa de ser surpreendente esse atraso, para um país que se quer sempre moderno, de ponta, em que as pessoas adotam as modas que mal acabaram de surgir, e saem correndo para adquirir qualquer nova engenhoca eletrônica. Portugal, que sempre olhamos de cima, que chamamos depreciativamente de " avozinho", há muito aprovou por plebiscito popular a liberação do aborto. E quando foi mesmo que mais de trezentas personalidades femininas da França assinaram o documento "Eu fiz um aborto"? Faz tempo. Mas o apelo teve êxito, e em 1975, alavancada por Simone Veil, Ministra da Saúde, a liberação do aborto foi aprovada. Desde então, o número de abortos vem decaindo progressivamente.
Aqui, porém, nesse nosso país erótico por excelência — não é a imagem que fazemos questão de exportar? — preferimos a hipocrisia.
Calcula-se, modestamente, em 100 mil o número de abortos anuais no Brasil. Tendo em vista, porém, o silêncio imposto pela legislação, podemos pensar em até 1 milhão, ou mais. Só no caso de Jandira, quatro mulheres embarcaram no mesmo carro, com a mesma finalidade. Jandira não voltou. Uma em quatro, a proporção é alta.
Toda vez que é chamada a opinar, a classe médica diz que o aborto precisa ser debatido, não do ponto de vista ideológico, mas como grave questão de saúde pública. E era exatamente o que dizia em 2010 o ministro Temporão:"Aborto é uma questão de saúde pública".
Criminalizar o aborto não é, conforme já se verificou no mundo inteiro, a forma de acabar com ele. A mulher que de fato não quer ter um filho, não o terá, seja quais forem os meios. E se 3 anos de cárcere é a pena que pode pegar pelo aborto, muito mais longa é a pena que lhe tocaria tendo um filho que não quer, ou que não pode ter.
Ao contrário do que apregoam as organizações conservadoras, não se trata de ser contra ou a favor do aborto. Ninguém é a favor, muito menos as mulheres que se vêm compelidas a fazê-lo. A questão é proteger a saúde e a vida daquelas mulheres que, com ou sem direito legal, interromperão sua gravidez.
Antes de desligar o celular, Jandira disse para o ex-marido:"... tô em pânico, ore por mim". Ignorada pela lei dos homens, tentava se socorrer com as orações. Também não foi ouvida.