Marina Manda Lembranças C oisa mais autônoma é a memória, que tantas vezes se recusa a atender quando a convocamos, e tantas outras se ma...
Marina Manda Lembranças
Cada vez que preparo a "pasta"— os outros podem dizer "macarrão", mas eu me mantenho tão fiel ao hábito alimentar quanto à palavra — penso em Luciana. E há mais de 40 anos faço "pasta" duas vezes por semana. Luciana era a desenhista míope e gordinha que vinha em casa da minha avó, passar a limpo os esboços do meu tio figurinista. Eu era criança e, de pé ao lado da prancheta, acompanhava o surgir do milagre sobre a folha branca, fascinada como se observasse um Michelangelo. Pois essa mulher amorosa, certamente mais distraída do que deveria, acabou morrendo de forma trágica, muitos anos mais tarde, em consequência das queimaduras sofridas quando, sozinha em casa, derramou sobre si mesma a água fervente em que havia cozinhado a "pasta". Tornou-se inevitável para mim, ao jogar o macarrão na panela, que o nome dela aflore com a fervura.
Basta entrar na minha garagem dirigindo, para que a imagem de Arakén se sente ao meu lado no banco do carona, e eu o ouça dizer que admira a perícia com que evito as colunas. Trabalhei muitos anos com Arakén Távora. Primeiro, em televisão apresentando as longas entrevistas que ele fazia com grandes personalidades da cultura, no programa Os Mágicos, da TVE — e que a TVE apagou mais tarde para aproveitar os filmes! —. Depois, participando do projeto Encontro Marcado, que levava escritores às universidades do país inteiro. Viajamos juntos durante muitos anos, e teria infinitas coisas para contar dessa figura singular, desse jornalista inventivo de quem acabei me tornando confidente. Mas é na hora de passar pela primeira coluna da garagem, que a voz baritonal dele me chama, "Marininha...". E foi por causa dessa voz, da excessiva confiança provocada por seus elogios ao meu talento de motorista, que um dia acabei rebentando a lateral do carro na segunda coluna.
Ontem, minha filha, que me sabia sozinha em casa e conhece meu amor por cinema, telefonou para me dizer em que horário e canal passaria O Homem Que Sabia Demais, de Hitchcock. E à noite assisti o filme com minha avó. Está morta há muitíssimo tempo essa avó que me amava. Mas por volta dos meus 20 anos, fugindo de um noivado que havia deixado de ser uma boa idéia, passei cerca de seis meses no apartamento dela, em Roma. Meu quarto era no andar de baixo, cujo acesso se fazia por uma escada em caracol.
Passava naquele tempo, na televisão, uma série de filmes curtos de Hitchcock, como um seriado, apresentados pelo próprio autor , que aparecia antes, recortado em silhueta. Creio que a mesma série passou também no Brasil, embora bem mais tarde. Minha avó adorava esses filmes. E tantas vezes, estando eu no meu quarto desenhando — havia deixado para trás a Faculdade de Belas Artes — ouvia a musiquinha sincopada que anunciava o programa, e logo em seguida a voz alegre da minha avó chamando: "Marina, c'`e Hitchcock!!". Então eu subia correndo a escada só curvas, e sentávamos as duas diante da televisão, com o mesmo sorriso expectante.
Depois disso, embora lembre da minha avó com frequência e por diferentes motivos, não há possibilidade de eu ver mestre Hitchcock, sem que ela esteja junto.