Marina Manda Lembranças P egamos as bicicletas, e fomos. As bicicletas não eram nossas, mas alugadas na lojinha muito modesta da cida...
Marina Manda Lembranças
Saímos assim que clareou. Nós também clareávamos, sorrindo à aventura. Três amigas em férias, hóspedes no sítio de uma delas. Três adolescentes que como boas meninas se despediram da única mãe presente, prometendo tomar cuidado e dispostas a não fazê-lo.
Nosso plano era simples: sair de Conselheiro Paulino, perto de Nova Friburgo, pedalar pela estrada até Bom Jardim, e de lá embarcar de volta no trem –sim, havia trem-, descer em Conselheiro, devolver as bicicletas na loja e caminhar até o sítio. Pretendíamos estar em casa depois do almoço. A distância equivalia a 15 quilômetros, não parecia muita coisa.
Alguns detalhes, porém, se infiltrariam no nosso plano. Primeiro detalhe: nenhuma de nós era ciclista ou sequer amiga de bicicleta. Segundo detalhe: a estrada não era asfaltada, mas de terra. Terceiro detalhe: não conhecíamos o percurso, nunca o havíamos percorrido, sequer de carro.
Subimos no selim. Detalhes não são levados em conta quando se tem a vida pela frente, e nas primeiras pedaladas tudo foi riso e ameaça de cair. Logo tomamos o ritmo. O ar era fresco, nossos cabelos estavam presos, ainda não se usava protetor solar.
Alguns quilômetros passaram sob as rodas. O ar já não era tão fresco. O trânsito de caminhões aumentava, e não podíamos mais pedalar com folga na estrada. Ao ouvir o aproximar-se de um carro ou caminhão vindo de trás, prudência mandava chegar junto ao barranco. E junto ao barranco a poeira acumulada formava uma duna corrida em que a bicicleta atolava ou derrapava. No alto dos caminhões os homens sorriam, por vezes nos ofereciam carona. Nós sorriamos de volta agradecendo e fazendo que não. Ainda existia gentileza nas estradas.
Não havíamos previsto a supremacia das subidas, sempre mais longas que os modestos declives. Mas, embora de fôlego curto, ríamos a cada nova ladeira, amaldiçoando em voz alta a topografia. Os cabelos haviam se soltado.
Ainda não era hora do almoço quando chegamos a Bom Jardim. O trem demoraria a passar.
E se fossemos até Cordeiro? Não sei de quem foi a ideia, mas assim que surgiu, tornou-se de todas. A menos esportiva, justamente aquela a quem tocara a bicicleta menor, teria preferido não ir, mas só o disse alguns anos depois. Sabíamos que Cantagalo era adiante, na mesma estrada, não nos preocupamos com a distância. Novamente subimos no selim que havíamos abandonado para dar uma volta na praça. E fomos.
Agora parecia só haver subidas, e íngremes. Além das dunas de poeira, costeletas. E o sol exacerbando. A da bicicletinha padecia, dentes trancados, pedalando sem queixa. Já não ríamos nem amaldiçoávamos a topografia, havíamos tornado a prender os cabelos sobre as nucas suadas. Dos caminhões que passavam, alguns tinham sabido em Bom Jardim da nossa façanha – não era comum três mocinhas pedalarem grandes distâncias no mundo rural – e nos incitavam a abandonar a empreitada, que subíssemos na caçamba, nos levariam e às bicicletas. Recusávamos a contra gosto, não por medo de estupro – a prática ainda não era um costume - mas por orgulho. Aquilo que havia começado como um passeio se tornava uma questão de honra. Continuar de bicicleta até o fim era uma imposição sem sentido, mas inabalável.
E afinal, como deus quis, ou seja, semi mortas, chegamos a Cordeiro. Ainda algumas pedaladas furiosas para alcançar a estação, justo a tempo de jogar as bicicletas no trem leiteiro das 18:40, pagar, e pedir ao maquinista que as deixasse na parada de Conselheiro Paulino. Nós, sem forças, ficamos.
Arrastamos os pés até a igreja, entramos naquele frescor sombrio como quem entra em uma piscina, e arreamos, cada uma em um banco.
Dormimos durante horas. Depois conseguimos uma carona. Fomos até Conselheiro, e dali, a pé como programado, até o sítio. A hora da volta havia passado há muito, mas ninguém ralhou com as três heroínas que regressavam. Havíamos vencido 50 quilômetros, no pedal.
Alguns quilômetros passaram sob as rodas. O ar já não era tão fresco. O trânsito de caminhões aumentava, e não podíamos mais pedalar com folga na estrada. Ao ouvir o aproximar-se de um carro ou caminhão vindo de trás, prudência mandava chegar junto ao barranco. E junto ao barranco a poeira acumulada formava uma duna corrida em que a bicicleta atolava ou derrapava. No alto dos caminhões os homens sorriam, por vezes nos ofereciam carona. Nós sorriamos de volta agradecendo e fazendo que não. Ainda existia gentileza nas estradas.
Não havíamos previsto a supremacia das subidas, sempre mais longas que os modestos declives. Mas, embora de fôlego curto, ríamos a cada nova ladeira, amaldiçoando em voz alta a topografia. Os cabelos haviam se soltado.
Ainda não era hora do almoço quando chegamos a Bom Jardim. O trem demoraria a passar.
E se fossemos até Cordeiro? Não sei de quem foi a ideia, mas assim que surgiu, tornou-se de todas. A menos esportiva, justamente aquela a quem tocara a bicicleta menor, teria preferido não ir, mas só o disse alguns anos depois. Sabíamos que Cantagalo era adiante, na mesma estrada, não nos preocupamos com a distância. Novamente subimos no selim que havíamos abandonado para dar uma volta na praça. E fomos.
Agora parecia só haver subidas, e íngremes. Além das dunas de poeira, costeletas. E o sol exacerbando. A da bicicletinha padecia, dentes trancados, pedalando sem queixa. Já não ríamos nem amaldiçoávamos a topografia, havíamos tornado a prender os cabelos sobre as nucas suadas. Dos caminhões que passavam, alguns tinham sabido em Bom Jardim da nossa façanha – não era comum três mocinhas pedalarem grandes distâncias no mundo rural – e nos incitavam a abandonar a empreitada, que subíssemos na caçamba, nos levariam e às bicicletas. Recusávamos a contra gosto, não por medo de estupro – a prática ainda não era um costume - mas por orgulho. Aquilo que havia começado como um passeio se tornava uma questão de honra. Continuar de bicicleta até o fim era uma imposição sem sentido, mas inabalável.
E afinal, como deus quis, ou seja, semi mortas, chegamos a Cordeiro. Ainda algumas pedaladas furiosas para alcançar a estação, justo a tempo de jogar as bicicletas no trem leiteiro das 18:40, pagar, e pedir ao maquinista que as deixasse na parada de Conselheiro Paulino. Nós, sem forças, ficamos.
Arrastamos os pés até a igreja, entramos naquele frescor sombrio como quem entra em uma piscina, e arreamos, cada uma em um banco.
Dormimos durante horas. Depois conseguimos uma carona. Fomos até Conselheiro, e dali, a pé como programado, até o sítio. A hora da volta havia passado há muito, mas ninguém ralhou com as três heroínas que regressavam. Havíamos vencido 50 quilômetros, no pedal.