Marina Manda Lembranças E u amo o Dahmer. Meu marido sabe e, embora não compartilhe pois não é amante de tiras, não se opõe. Todo dia...
Marina Manda Lembranças
Todo dia, depois do café e às vezes durante, abro o Segundo Caderno do Globo e vou lá no alto da página 7, ver como funciona a cabeça que é a ilha, ou o que estranhos demônios criaram e certamente continuarão criando, ou o que datilografa em sua velha máquina de escrever o homenzinho sempre de perfil e cabelos ao vento.
Há gente que gosta de tiras, e gente que não. Mas gostar de tiras não funciona assim, no plural. É gostar de uma ou outra, específica, e nem olhar para as demais. É uma cumplicidade, um pacto. Eu nem sei quais são as que vêm abaixo do Dahmer, na mesma página. Confesso outros amores - ah, o desenho do Laerte! - mas em outros jornais, na Folha, no Estado, e não tão diários.
Gosto mais de tiras, talvez, que de cartoons - embora goste de ambos. O cartoon mata o assunto com um só tiro, seco. Prescinde da colaboração de quem o lê, e se entrega inteiro a um único olhar. Exige precisão, é verdade, e ganha mais vida se for inteligente e não somente engraçado. É como a tacada que encaçapa direto.
A tira, ao contrário, vive da pausa. Respira em três quadros, no máximo quatro. E conta com isso. O leitor entra de pé leve no primeiro quadro, troca o pé para pisar no segundo, e pula com os dois juntos no terceiro. É uma dança mental que espera - e exige- ser recompensada ao final. Uma colaboração entre leitor e desenhista. Quando a tira é inteligente e dá um pulo do gato no último quadro, torna-se automático voltar ao primeiro, que agora completado pelo final, entrega outra leitura. Para ficarmos na metáfora da sinuca, é aquela tacada que faz a bola dar dois toques e encaçapa por ricochete.
Porque amo o Dahmer? Porque ele quase nunca me trai. E traição é justamente o grande risco da tira. Ou seja, você é convidado à dança, dá o primeiro passo, se empenha, já expectante dá o segundo passo, prepara-se para o pulo final, mas no terceiro quadro nada é dito que justifique você ter percorrido o caminho até ali. Desapontamento. Se o desapontamento se repetir ou ocorrer com frequência, você desama aquela tira, passa a visitá-la só esporadicamente, ou a abandona de todo.
Gosto da crueldade crítica do Dahmer, da sua economia verbal, do traço essencial. Posso estar equivocada, mas ele começou essa tira desenhando de outro modo, desenhando muito bem. E aí deu uma meia trava e "desaprendeu"a desenhar. Foi quando começou a desenhar melhor.
Tive um professor de gravura, Orlando da Silva, pessoa encantadora a quem muito devo, que a certa altura da vida sentiu seu desenho ficar muito fácil, muito certinho. Então, para fugir da facilidade, começou a desenhar com a mão esquerda. O problema é que não com a mão se desenha, ou não prioritariamente com a mão. Desenha-se com a cabeça. A mão, talentosa ou bem treinada, obedece. De modo que, mesmo usando a esquerda sem ser canhoto, corre-se o perigo dela aprender, e passar a desenhar tão certinha quanto a direita.
Não gosto de tiras narrativas, nem das que prosseguem uma história como se fossem capítulos. A ser assim, vou logo para os quadrinhos. O bom da tira, para mim, é quando ela se completa nos três quadros. Como um miniconto. Ou, se for econômica e exata nas palavras, como um haikai.