Marina Manda Lembranças E le vinha dirigindo o taxi a caminho do aeroporto e, de costas, disse em meio a uma conversa sobre a dureza da...
Marina Manda Lembranças
Coitada, disse eu, sinceramente contrita. E morreu de que?
De fome. A resposta soou seca como um estalo. Seguiu-se um silêncio, em que qualquer coisa a dizer parecia momentaneamente invalidada por declaração tão dura.
Mas ele precisava falar, e retomou a conversa.
É por causa de fome que se cospe sangue, não é? O que a pessoa come é insuficiente, o pulmão vai ficando fraco, a pessoa começa a tossir, acaba tuberculosa. Olhou para mim pelo retrovisor, mais pontuando a fala do que em busca de anuência. E contou o resto.
A mãe dele tinha três filhos. O pai era casado com outra, família organizada, crianças, casa, tudo certinho. O dinheiro de que a mãe dispunha para sustentar os filhos era pouco, bastava para comprar comida para eles, três boca pequenas mas com fome. O que sobrava mal dava para alimentá-la. E foi aquilo, ela comendo cada vez menos, o pulmão ficando fraco, depois o sangue. Ele tinha seis anos.
E quem cuidou do senhor?, perguntei.
O pai tinha outros filhos, mais velhos, também fora do casamento, com uma terceira mulher. Ele ficou um tempo com uma irmã dessa safra, já adulta, depois foi morar com uma tia, depois com outro parente, e assim, pulando de uma casa a outra, cresceu. Os irmãos haviam sido separados. Quando teve idade, foi cuidar da própria vida, mais tarde veio para o Rio.
Não se queixou do pai. Nenhuma crítica. Seu sofrimento era por aquela mãe moça, amada, obrigada pelas circunstâncias a abandonar vida e filhos.
Me disse a idade dele atual, mais de setenta. E eu me perguntei em silêncio quantas vezes, ao longo de toda a sua vida de taxista, havia contado a passageiros desconhecidos essa mesma história, talvez com as mesmas palavras, sem conseguir desgastar a dor que o habitava desde os seis anos .
Aterrissei no aeroporto de chegada, tomei um taxi até o hotel. Trânsito lento. E o motorista encheu o tempo contando-se outra história. Também de pai.
Não dele, mas de um jovem cunhado. Que tinha 11 anos quando o pai amadíssimo, saiu de casa uma manhã como quem vai ao trabalho, e nunca mais voltou. Em vão o menino, e depois o jovem que ele se tornou, perguntou à mãe o que havia acontecido, onde estava o pai. Ela dizia não ter idéia, nem do motivo da fuga, nem se era mesmo fuga, e muito menos do seu paradeiro.
Passaram-se anos, o jovem fez-se homem, casou, estabeleceu sua própria família. E eis que um dia, recebeu no computador uma mensagem do pai dizendo que há muito o procurava, e acabava de encontrá-lo através do Face. A resposta imediata do filho continha a pergunta que há tanto o atormentava: por que você foi embora? Não posso explicar por internet, escreveu o pai, mas faço questão de te contar tudo pessoalmente; moro agora no Amapá; vou te mandar uma passagem para você vir para cá.
Combinaram que seria dali a duas semanas, na terça-feira. Você vai ficar sabendo tudo, meu filho- prometeu o pai.
A passagem chegou, o filho preparou-se para viajar. Duas semanas depois, na segunda-feira, o pai teve um ataque cardíaco fulminante.
O filho herdou o rendoso negócio do pai. Mas a pergunta ficou para sempre sem resposta.
O filho herdou o rendoso negócio do pai. Mas a pergunta ficou para sempre sem resposta.