Marina Manda Lembranças U m livro intenso tem habitado minha vida nas últimas semanas, "A Imperatriz de Ferro", da historiad...
Marina Manda Lembranças
O diálogo que até então travávamos em silêncio, pareceu ganhar outra dimensão. Mal a reconhecia, porém. A mulher que eu guardava na lembrança era, não só mais jovem, como moderna, vestida à moda ocidental, o cabelo mal batendo nos ombros. Esta, ao contrário, tinha o corpo oculto por um traje chinês longo e largo, de grandes mangas, bordado. E o cabelo havia-se transformado em cabeleira farta, presa ao alto em estranho penteado.
Mais adiante, na entrevista, Yung Chang explicou. Em homenagem ao seu livro e à sua personagem, vestia um traje original, da época da Imperatriz Cixi, presente de uma colecionadora italiana, leitora apaixonada de seu outro livro,"Cisnes Selvagens".
Aos nossos ouvidos, Cixi parece apelido pouco consoante com a mulher que com mão forte levou a China para a modernidade, em meados do século XIX. Mas Cixi, que também pode ser grafado Tzu Hsi, é o nome que recebeu ao ingressar na corte quando, aos 16 anos, foi selecionada entre as jovens mais promissoras do pais, para ser concubina do imperador. Significa "gentil e alegre". Como se chamasse antes não se sabe. Nomes femininos não mereciam registro, e ela consta apenas como "mulher da família Nala".
Por ser mulher, a Imperatriz de Ferro governou sempre atrás de um biombo de seda. Os dignitários, embaixadores, colaboradores e chefes militares que despachavam com ela na sala de audiências, e que se ajoelhavam batendo três vezes com a fronte no chão, não deviam vê-la. Viúva, ela reinou sobre um país imenso e poderoso, mas à sombra de dois imperadores. Primeiro o filho, que morreu de varíola aos 18 anos, depois o sobrinho, adotado por ela aos 3 anos para tornar-se imperador.
Yung Chang nos conta a história dessa mulher determinada, numa China que não deixava espaço para a determinação das mulheres. Foi governante acima de tudo. Um dia antes de morrer, sabendo que morreria, mandou envenenar o filho adotivo, também moribundo, para que não houvesse risco de que, recuperado, arruinasse com seu temperamento fraco a China que ela havia lutado para construir. Conheci Yung Chang em 1995, quando veio ao Brasil para o lançamento de "Cisnes Selvagens", seu primeiro livro. Na época, escrevi numa crônica como ela começou a fala tirando da bolsa, e nos mostrando, a braçadeira que havia usado quando Guarda Vermelha, e o sapatinho de cetim da sua avó, que durante toda a vida sofrera dores nos pés encolhidos. Yung Chang começava sua carreira contando parte da história da China através de vidas femininas. No meu exemplar do livro, encontro anotado: "Apresentei Yung Chang em sua conferência na Casa Lauro Alvim. A mãe, que estava com ela, não fala outra língua a não ser chinês, mas vê-la falar é encantador. Ela se acende quando fala. Ambas têm uma pele maravilhosa, compacta, uniforme. (....) Em seu livro, ela se refere, como ponto de beleza, a pessoas de pele branca e rosada. Comprova-se que os "amarelos" só são amarelos para nós. Nem uma única vez ela se refere a essa cor de pele. Os chineses se vêm absolutamente brancos"