Marina Manda Lembranças P assei o fim de semana em Angra. O passado, como um cavalo, me puxava para um lado. O presente, com seus moto...
Marina Manda Lembranças
Meu pai teve uma fazenda em Angra dos Reis. Chamava-se Pedra Branca. Isso foi muito antes que existisse a nova estrada. Íamos pela antiga Rio/São Paulo, embicávamos antes de chegar a Barra Mansa, subíamos a serra, vencíamos três pontos culminantes — esses e só esses pavimentados de paralelepípedos — descíamos em Lídice, comprávamos um famoso queijo, e em algum momento chegávamos à fazenda. Nada ao redor. O mar estava a 11 quilômetros.
O mar, neste fim de semana, esteve o tempo todo diante dos meus olhos. O mesmo mar, mas outro. Sempre foi verde e manso o mar na Bahia da Ribeira, sempre se apoiou em silêncio nos costões, refletindo a vegetação. Continua verde e manso, mas o namoro com a costa foi rompido por casas, condomínios, deques e ancoradouros que não param de se multiplicar. E o silêncio foi sequestrado pelas lanchas.
Meu amigo, dono da casa onde estive este fim de semana, acaba de voltar de um congresso nos EUA. Um congresso de modernidade, cheio de robôs e equipamentos eletrônicos, de máquinas e de programas que fazem coisas com mais rapidez e eficácia que os humanos. Falamos disso uma noite, de como os computadores estão mais precisos nos diagnósticos médicos e nas análises laboratoriais do que os médicos, de como em alguns países a lavoura está toda mecanizada. De como esse processo avança veloz.
Com meu pai, íamos à cidade fazer compras de comida, tomar um café ou uma cachaça, ver gente. Que bonita era Angra! Os dois conventos, a rua principal toda de sobrados antigos, daqueles de sacada em ferro batido e abacaxis nas beiradas. Começava o comércio a estragar o conjunto, mas apenas começava. E era bom caminhar até o porto, ver as traineiras ondeando suas cores. Angra guardava seu coração antigo.
Era esse coração que ainda batia no tempo dos campeonatos de Caça Submarina. Parecia então que o Argos havia atracado no porto, a cidade tomada por aqueles homens bonitos e jovens, queimados de sol, por vezes louros. E na pesagem dos peixes, penduravam-se nas correntes os meros imensos como mitológicos monstros marinhos. Meu irmão era um dos argonautas dessa cena, e íamos a Angra em bando, algumas vezes voltando ao Rio de traineira em fim de tarde quase escuro, envoltos nas japonas.
Neste fim de semana não vi nenhuma traineira cruzando o mar com as lanchas. Nenhuma traineira poitada diante dos deques. E no entanto, muitos anos depois dos campeonatos, um casal amigo que tinha uma casa na ilha da Gipóia, ainda preferia usar uma traineirinha para se deslocar até o continente.
Vi, isso sim, uma ilha completamente despida da sua vegetação, recoberta de gramados e canteiros como um jardim francês do século XVIII. Parecia uma bolsa Vuitton na paisagem.
Durante esses dois dias, o passado me puxou de um lado, a modernidade do outro. Meu amigo me contava que caça bois perdidos, em sua fazenda, com um drone conectado a três satélites, câmara ligada diretamente no celular, um raio de alcance aéreo de 300 metros. E olhando o mar à minha frente eu pensava na Angra que conheci quando a estrada ia até Mangaratiba, e de lá se pegava a lancha para chegar à Ilha Grande.