Marina Manda Lembranças A cabo de ler um livro muito interessante que me foi mandado de presente por uma amiga francesa: "Medéia...
Marina Manda Lembranças
A Medéia que habitava meu imaginário era uma fusão do mito com a personagem de Eurípides, somada ao rosto de Maria Callas intérprete enigmática no filme que Pasolini fez dessa tragédia grega. Era a mulher que por amor ou por ciúme ou por ressentimento, mata os próprios filhos gerados pelo homem que a abandona. Nem sei se lhe agregava o título de feiticeira, mas é provável que não, porque feiticeiras costumam ter uma parcela da minha simpatia. A bem dizer, nunca havia parado para encará-la.
De repente, Christa Wolf me leva a olhá-la de frente. E a mulher que vai se concretizando através do relato de seis vozes diferentes, inclusive a sua própria, tem uma concretude que a extrai da moldura mitológica e a traz para o cotidiano.
Nenhuma das seis vozes dialoga com a outra. Cada voz é solitária e muda, pensamento das seis personagens ao redor das quais se articula esse drama anunciado. Entre passado e presente, cada uma nos dá uma versão da história que a todos eles pertence, porque de todos mudou a vida.
Medeia é bonita, disso nunca duvidamos. E é exótica. Sua terra, a Cólquida (atualmente a Georgia) é vista pelos gregos como bárbara. Ali, Jasão só enfrentou dificuldades, lutas e perigosos encantamentos. Se conseguiu vencê-los e roubar afinal o Velocino de ouro, foi graças aos filtros, aos unguentos e aos conselhos de Medeia. Por isso a leva consigo no Argos para Corinto. Medeia é feiticeira? Assim se deu a entender. Mas não é o que sempre se disse das mulheres que, através dos séculos, conheceram o poder medicinal das plantas e a força de uma sensibilidade aguçada? Quantas daquelas historicamente acusadas de feitiçaria, e mortas por isso, o eram realmente?
Medeia é uma presença diferente em Corinto, os homens a olham com desejo e temor, as mulheres a olham com desprezo e temor. O temor não é um bom sentimento. Se alguém a acusar de alguma coisa, todos os que lhe têm temor a acusarão também. E é fatal que alguém lhe atire a primeira pedra, pois ela caminha como quem tem orgulho.
Jasão, convenhamos, é mais ambicioso que herói, ou talvez o heroísmo seja uma manifestação da ambição. O fato é que ele vai buscar o Velocino porque seu tio Pélias , o rei de Iolco, prometeu entregar-lhe o trono se o trouxesse. Quando Pélias não entrega trono algum, Jasão vai para Corinto, aproximando-se do Rei Creonte. Quer um trono a qualquer preço, e se livrará de Medeia porque Creonte quer lhe dar a filha em casamento para fazê-lo seu sucessor.
Medeia é banida de Corinto. Glaucia, a filha de Creonte morre.
E aí trombamos com algo curioso. O assassinato dos filhos pela própria mãe pode nunca ter acontecido. Alguns narradores contam que ao ser banida de Corinto, Medeia não teve tempo de levar consigo os dois meninos, e os familiares de Creonte, em vingança pela morte de Glaucia, os lapidaram. Essa é também a versão do livro de Christa.
Por que, então, Medeia tornou-se o símbolo do filicidio? Porque Eurípides assim a quis, trágica protagonista da sua peça. Mas a escolha custou-lhe cara; no seu tempo, o dramaturgo foi acusado de ter-se deixado subornar pelos cidadãos de Corinto que não queriam ser retratados no palco como assassinos de crianças.