A casa é grande, o jardim, ao redor, imenso. Vi a casa uma vez do alto do Corcovado, e só então percebi quanto era isolada, a mancha neg...
A casa é grande, o jardim, ao redor, imenso. Vi a casa uma vez do alto do Corcovado, e só então percebi quanto era isolada, a mancha negra da mata, mais escura que a noite, vindo desmanchar seus contornos quase a meus pés. Somente no centro, onde eu sabia ser o pátio, uma lâmpada acesa.
A partir daquela noite, tive sempre, vívida, a noção de mim mesma ao lado da lâmpada, em meio aquele enorme mar de escuridão.
Na casa eu moro com meu irmão, e , às vezes, com meu pai, quando vem da fazenda. O casal de empregados que dorme no andar térreo desaparece tão completamente, logo depois do jantar, que parece partir. Não considero a lavadeira pessoa que more conosco; escura e silenciosa caminha pelos corredores denunciada apenas pelo pano branco da cabeça, e, em tantos anos, nunca a vi no andar superior.
A casa começa, no térreo, pela cozinha imensa, onde o fogão cheio de chaves e cromados é locomotiva doméstica, e as panelas borbulham lentamente na calma da tarde.
A sala de refeições dos empregados tem muitas cadeiras, já inúteis, ao longo da mesa comprida. Há uma mancha de ferrugem no bojo da pia. O sol que entra pelas janelas sempre abertas se reflete, mortiço, nos espelhos da cristaleira vazia.
Atrás da portinhola de rede, a despensa é gruta cheia de mistérios; as garrafas mais preciosas da escuridão; há o barulho da água nos tanques da lavanderia, e um cheiro de sol que os lençõis devolvem sob o ferro quente.
No corredor comprido muitas portas, antes quartos de empregados; algumas, fechadas a chave, protegem malas esquecidas; não creio que haja nada guardado no cofre forte ao fundo do corredor, mas a porta de aço mantêm a antiga dignidade.
Há grades em todas as janelas. Todas as janelas tem gerânios floridos.
Para chegar ao primeiro andar sobe-se uma escada interna fechada por uma cancela de madeira. A enorme porta da entrada principal, que na frente da casa, da para este andar, tem o trinco reforçado por uma corrente grossa entre os batentes de vidro e segura por um cadeado: raramente se abrem.
É aqui que eu fico, quase sempre só. Meu irmão passa os dias na rua, meu pai aparece esporadicamente, em vistas breves, os empregados sobem apenas nas horas das refeições e da limpeza.
A cancela de madeira dá para a copa, a copa se abre sobre o pátio interno.
Ao centro do pátio, a piscina é verde e escura; parada, se encrespa ao fim da tarde, quando as andorinhas forçam o peito n'água em rápido mergulho. A camada de cima é quente, a de baixo é fria, o fundo coberto de limo. Nos quatro cantos os sapos de bronze não cospem mais água.
A galeria que cobre ao redor da piscina se abre em arcadas: colunas sem elegância encimadas por capitéis pretensiosos recortam o sol e a lua, em sombras, sob o chão de mármore.
De um lado a sala de jantar, do outro os salões, nos dois restantes os quartos. Destes, usam-se o meu e o do meu irmão, ligados por um arco. Quando meu pai vem, abre-se também o quarto dele. Os outros estão, na maioria fechados a chave, fora alguns comunicantes que, sem móveis, se alinham vazios como corredores.
Na sala de jantar, só vou para as refeições.
Filtrada pelas venezianas, a luz dos salões dilui minha imagem nos espelhos. Sento nas poltronas, ando descalça sobre os tapetes. Sozinha, participo de grandes festas, danço, canto, sou muito bonita.
Nas tardes de verão, quando tudo parece parado a espera da noite, eu atravesso a casa lentamente. Não abro janelas. Olho nos quartos em penumbra coisas que já conheço. Depois, subo ao terraço. Um pouco intimada por tanto céu, vejo de um lado a lagoa, as ruas, os carros e as pessoas; do outro o interior da casa, a piscina parada, as colunas, o chão e mármore e sinto a vida toda deste lado.