Eu poderia hibernar nas tuas mãos quando o inverno chegasse. Enovelada na palma dormiria sem sobressaltos até a nova primavera ou até vo...
Eu poderia hibernar nas tuas mãos quando o inverno chegasse. Enovelada na palma dormiria sem sobressaltos até a nova primavera ou até você chamar meu nome.
Mas ontem mesmo olhei a mesa da sala de jantar e havia uma ânsia nova na madeira, e quando olhei de novo à tarde ela quase brilhava, e numa perna, lá embaixo perto do chão, sem fenda nem nada, uma gota verde intumescia. Hoje, já será folha.
Tenho estado tão bem nesse ar fino.
Eu não te disse nada, mas outro dia na cozinha, com as mãos mergulhadas na farinha e a boca farta do cheiro de trigo, ouvi um barulho limpo, vago farfalhar, papel amassado. Olhei, não vi, continuei. O barulho vivendo enquanto minhas mãos teciam a massa. Só mais tarde descobri o ninho. O pássaro não estava, tinho ido buscar alguma palha.
Eu poderia dormir buscando meu calor no calor da tua pele. Mas o jardim está tão florido e eu não posso deixar as minhas flores. Eu sei que a terra estraga o taco, mas você bem que gosta do canteiro junto à cama. As plantas nos assistem no amor e nos cuidam no sono. Eu sorrio para as plantas quando acordo. E como crescem! Breve, será difícil abrir a gaveta da cômoda.
Quis podar as roseiras e não tive coragem. Peguei a tesoura, olhei a boca do corte, e não ousei. Agora as rosas se abalançam pesadas, prenhes de si. Eu me tonteio ao cheiro. Esperarei que, secas, caiam aos poucos, e que o vento as leve.
Não quero fazer mal. E me pergunto, como amar as daninhas?
Ando tão preguiçosa no gramado da sala. As formigas nem ligam. Passam por cima sem quebrar a trilha, bordando seu caminho em minha pele. Eu não me mexo. E assim ficamos horas, eu montanha, elas galgando a doce solidez da carne.
Penso que quando o inverno chegar será preciso proteger na palha o coqueiro da janela, cobrir as morangueiras. Mas as abelhas andam tão ativas que a casa inteira se embala ao seu zumbido e a colmeia, na estante, vaza mel.
Tirarei alguns livros. A peroba se ressente do peso e brota pouco, e é preciso ganhar espaço para o esquilo que mora atrás da enciclopédia.
Espano, espano, e nunca está bem limpo. Há sempre um véu dourado sobre as coisas, efervescente sol que se derrama. Escrevo com o dedo em letra larga: pólen. E a borboleta se pousa na palavra, polvilhando de azul a minha mesa.
Estala a voz do grilo ao entardecer, crocita a perereca no banheiro, o galo canta. Mil pássaros me entregam a manhã. Nesse silêncio feito de ruídos, farfalha o móvel, engalha-se a cadeira, a folha cai do lustre volteando, a samambaia brota no ladrilho.
E mil patas se mexem, e mil hastes se embalam. Besouros decepam fios de grama, vaga-lumes se acendem e se apagam. Uma joaninha escala. A corola se abre, a pétala se expande, as raízes afundam solitárias.
Eu gostaria, querido, de adormecer em ti por todo o inverno. Mas não creio que chegue. Olho e cheiro e sinto, e a cada instante me apercebo de que o inverno está longe, e mais distante fica todo dia, desde que a primavera veio morar em nossa casa.
4-3-73