Marina Manda Lembranças P reparo, nesses dias, um curso sobre Pinóquio a ser dado on-line para alunos de pós graduação em Literatura ...
Marina Manda Lembranças
Agora, por exemplo, fui assaltada por um pensamento: o que há de comum entre Aquiles, Sigfrido, e a nossa marionete? O ponto frágil. Aquiles tinha aquele calcanhar desprotegido, e Sigfrido não viu que, ao banhar-se no sangue do dragão, uma folha pequena havia se grudado em suas costas deixando uma falha na invulnerabilidade do corpo. Por esses pontos os dois heróis podiam ser abatidos. E Pinóquio, qual é seu ponto frágil? Eu diria que é algo mais intenso que a curiosidade, a vitalidade. As suas boas intenções são sistematicamente derrubadas se alguém ou alguma coisa o atrai, levando-o a crer que o melhor está logo adiante.
É o que acontece quando se prepara para, pela primeira vez, ir à escola. "pareceu-lhe ouvir à distância uma música de pífaros e batidas de tambor(..)" Ele se pergunta que música seria aquela, hesita, e decide ir ver os pífaros. É o que acontece quando encontra a Raposa e o Gato que lhe prometem multiplicar suas moedas. E quando, novamente, deixa de ir à escola para ir até a praia com os colegas. E quando desiste de ser um bom menino, para acompanhar seu amigo Pavio ao País dos Brinquedos.
Ele quer fazer o que é certo, e tem consciência disso, mas acaba sempre preferindo fazer o errado.
O leitor sabe que Pinóquio vai ceder e que a escolha terá más consequências, mas não pode avisá-lo. E nem quereria, porque sendo também criança prefere seguir em frente com a marionete e viver, através dela, a transgressão. Nenhum pequeno leitor é cúmplice do Grilo Falante.
Com o mesmo sentimento das crianças, um alemão, o escritor Otto Julius Bierbaum, escreveu outra versão de Pinóquio, "Zäppel Kerns Abenteuer" (as aventuras de Zäppel Kerns) em que o herói, confrontado no final com a oportunidade oferecida pela Fada de tornar-se um bom menino, hesita: "Mas mãe, eu teria que perder tudo aquilo que sou, abandonar as minhas características artísticas? (...) Me parece, mãe, que seria melhor eu continuar sendo uma marionete." Ao que a Fada responde:"Muito bem dito, meu filho! (...) Continue sendo o que é : não um menino, mas uma imagem para os meninos com a qual eles tenham o que aprender, rindo." Sobem os dois numa rica carruagem e partem para um destino que, embora vago, sorri.
E no entanto, o livro de Collodi teria sido muito outro se apenas ele o tivesse acabado, como tentou, no capítulo 15, quando o pobre Pinoquio é enforcado pela Raposa e o Gato no galho do Carvalho grande. Teríamos então um final dramático, sem redenção possível para o herói, sem sequer a vitória do mal, pois os dois meliantes abandonam a vítima sem ter conseguido arrancar-lhe as quatro moedas que escondia debaixo da língua. E sem Fada, já que a sua única aparição até ali havia sido como uma menina pálida, de cabelos azuis que, à janela de uma casinha branca se dizia morta, à espera do caixão que viria buscá-la.
Felizmente as crianças que acompanhavam a aventura em capítulos no "Giornale per i bambini" protestaram, obrigando o autor a continuar a história.