Marina Manda Lembranças S ó meia dúzia de degraus. Mas era uma escada, e escadas podem ser tentadoras como despenhadeiros quando se tem...
Marina Manda Lembranças
Hesitou um instante, depois arrancou a mão num safanão, afastou-se da mãe, e começou a descer sozinha. Compenetrada. A mãe ao lado, pronta a ampará-la se ameaçasse cair. Ela, autônoma.
Que riso de plenitude abriu, chegando ao fim! Murmurou alguma coisa, e ignorando o chamado da mãe, lá se foi escada acima. Subiu e desceu umas três vezes conversando consigo mesma, antes de dar-se por satisfeita e conceder sua mão à mãe que a esperava.
Não sei que idade ele tinha, era pequeno. Esperava, com algum adulto e muitas outras crianças, que o portão da escola fosse aberto. Afastou-se um tanto dos demais, subiu uma breve rampa e, chegando em cima, debruçou-se no gradil estendendo a mão para fora. Segurava um chaveiro sem chave, que balançou em ameaça dizendo coisas que eu não conseguia ouvir. Propositadamente, deixou cair o chaveiro. E logo desceu correndo, catou o chaveiro, e tornou a subir para repetir a mesma operação. Entre os outros meninos à espera, um deles segurava o boneco de um super herói fazendo-o voar.
Ela estava com a mãe no restaurante. Sentada num banco de madeira de espaldar alto, deslizou o corpo até ficar na extremidade afastada da parede. Depois, com gestos medidos, sentou sua boneca entre ela mesma e a outra extremidade, de modo que estivesse protegida. Abriu o guardanapo, e o estendeu sobre seus próprios joelhos e os da boneca. Alisou o pano. Só depois atendeu a mãe que lhe perguntava o que queria comer.
Essas crianças, que eu observava atenta, haviam-se transferido por instantes para outro espaço, o espaço do imaginário.
No entanto, toda vez que visito uma escola - não visito muitas - as crianças me perguntam de onde tiro as idéias para os meus contos; como se elas próprias não fossem contumazes inventoras de histórias. E, quando instadas pela escola a escreverem seus próprios contos, surpreende a falta de imaginação da maioria, que mais se esmera em pastiches do que em criação.
Em algum ponto no percurso do crescimento, ou do ensino, é erguida uma divisão entre o imaginário com que as crianças constroem suas brincadeiras, a naturalidade com que inventam jogos, mundos e personagens, e um outro imaginário considerado mais importante ou mais requintado, aquele, justamente, de que um escritor ou roteirista ou dramaturgo lança mão para criar suas histórias. Essa divisão leva as crianças a crer que não sabem inventar uma história, embora o tenham feito até então.
As crianças que citei acima eram pequenas, conseguiam ainda ignorar o olhar alheio. Logo, porém, haverão de ficar mais reservadas, ou conscientes, sentindo no olhar dos maiores um peso desabonador.
A sociedade dos "grandes" considera que o livre trânsito no imaginário tem idade para acabar. E é cedo. Depois disso, as crianças são instadas a imaginar aquilo que os adultos acham melhor para elas, e nas horas mais convenientes. Como a escola, os portões do imaginário também terão que obedecer ao relógio. Nada de ficar à toa. Nada de falar sozinho. Nada de inventar bobagem. Nada, sobretudo nada, de cabeça nas nuvens.