Marina Manda Lembranças D urante um tempo, Fitsum Nayzgi pensou que deixaria a terra dos seus pais. Juntou dinheiro e, quando teve o su...
Marina Manda Lembranças
A terra de Fitsum é a Eritréia, a mesma onde nasci. Eu também saí de lá, mas não era a terra dos meus pais e não precisei juntar dinheiro. Deixamos nosso apartamento alugado, e nos transferimos para Trípoli, na Líbia. Não sei que meio de transporte usamos, meus pais nunca me falaram dessa viagem, viajar era uma coisa natural que na minha família não despertava muitos comentários. Teríamos ido de avião? Ou teríamos deixado Asmara de carro e descido o planalto, para embarcar no porto de Massawa ? Romanticamente gostaria de pensar que navegamos pelo Mar Vermelho, chegando ao Mediterrâneo através do Canal de Suez, mas parece improvável. Uma coisa é certa, não fomos cruzando o país até sua fronteira com o Sudão, nem atravessamos o deserto até alcançar o sul da Líbia, que também teria que ser varada para chegar ao mar.
Fitsum não teve escolha. Perseguido político num país onde vigora a ditadura, saiu por onde era possível. Atravessou a Eritréia, que é mais árida do que verde, e tentou cruzar a fronteira para o Sudão. Foi preso. Teve que fazer serviço militar. Tentou novamente, foi preso. Ficou seis meses na cadeia. Saiu. E tentou mais uma vez, agora pagando a um atravessador. Atravessou. Porém, sem outra alternativa, passou seis anos em um campo de refugiados. Não estava sendo perseguido, mas tampouco era a vida que desejava. Quando teve dinheiro, pagou a outro atravessador para cruzar o deserto com mais 30 pessoas. E finalmente chegou à Líbia.
A Líbia onde eu cheguei com meus pais e irmão é, na minha memória, uma casa branca com um poço e um cacto no jardim, um cachorro, um velocípede. Era mais do que isso, um projeto de colonização vibrante — só para nós colonizadores, é claro — uma cidade cosmopolita, antigas ruínas romanas, e campos onde cresceriam o trigo e a uva. Um futuro em construção, onde era bom estar.
Esse futuro há muito havia sido desconstruído quando Fitsum chegou, e nenhum outro havia sido posto em seu lugar. Então ele trabalhou durante um ano como pintor de paredes, e novamente juntou dinheiro e pagou — as taxas dos atravessadores iam ficando cada vez mais caras — para ser levado até a Itália. Viajou acocorado no porão de um barco movido por motor de caminhão, com mais 250 pessoas. Os que morriam eram jogados ao mar, os que sobraram foram resgatados pela Guarda Marinha italiana.
Quando saímos da Líbia, porque a Itália havia entrado na Segunda Guerra, fomos de avião, um hidroavião pequeno que lembro pousado na água e não recordo em vôo. Tínhamos pela frente duros anos de conflito.
Fitsum, que levou oito anos para chegar à Europa, também vai travar a sua guerra. Mandado inicialmente para um centro de refugiados, escolheu a França como destino. Vive agora debaixo de um viaduto no Norte de Paris, em um acampamento de tendas, com centenas de outros emigrantes. Não fala francês, não tem trabalho, não tem dinheiro, seu único documento é o número de registro que recebeu na Itália.
Eu desejei rever a terra em que nasci, não foi possível. Enquanto ditadura e pobreza continuarem por lá, Fitzum nem pensa em rever a sua.