Marina Manda Lembranças H ouve um tempo em que comíamos comida. Hoje queremos gastronomia. Nas casas, a bem da verdade, consome-se ...
Marina Manda Lembranças
Lembro dos meigos anos 50. Como se comia mal no Rio!! Havia poucos restaurantes que valessem a pena e, mesmo assim, uma pena assaz modesta. Um "must" era ir a Copacabana, no Nino, comer "paillard com fettuccine". E aquele bifinho atropelado acompanhado do "fettuccine" grudento, feito com massa sem identificação e temperado com parmesão sem passaporte, nos parecia delicioso. Mais que molho de manteiga e queijo, era o império do olho branco. E de sobremesa, reservávamos parte do prazer para pedir "soufflé ao Grand Marnier", que vinha transbordando espuma acima da laranja gelada.
No entanto, eu havia conhecido "fettuccine" mais autênticas. Devia ter meus 14 anos, quando fui com minha tia almoçar no famoso restaurante "Alfredo", em Roma, em Via della Scrofa, perto da grandioso mausoléu de Augusto. Era o que havia de mais elegante e delicioso.
O próprio Alfredo veio nos servir seu "fettuccine" — criado, segundo a lenda, para satisfazer um desejo de sua esposa grávida. Era um homão maduro, alto e imponente, que ostentava bigodões grisalhos dignos de um general austríaco. Remexeu a "pasta" na travessa com movimentos rituais. Empunhava talheres grandes, de ouro, presente dado muitos anos antes por Mary Pickford e Douglas Fairbanks que, em lua de mel em Roma, haviam descoberto o restaurante há pouco inaugurado, contribuindo com sua presença e louvores para que se tornasse famoso. Não seria o único casal de estrelas a frequentar a casa no auge da paixão. Também Elizabeth Taylor e Richard Burton, no tempo em que filmavam Cleopatra e se amavam ao ritmo de bebedeiras históricas, iam se empapuçar de "fettuccine".
Com o tempo, a presença antes constante de Alfredo havia se tornado uma homenagem reservada aos clientes especiais. E minha tia, que mantinha a aura de grandíssima cantora lírica do seu tempo, certamente o era. A homenagem só se completava quando Alfredo, após servir os outros comensais, oferecia ao homenageado a porção mais saborosa, a ser comida diretamente na travessa que conservava toda a riqueza do molho.
Olhei para minha tia. Esquecida dos constantes regimes com que mantinha o peso, seu rosto era pura beatitude.
No "Alfredo", o "fettuccine" não vinha acompanhando nada. A pura idéia de um acompanhamento teria sido considerada sacrílega. Era prato a se comer sozinho, como entrada. Se houve um segundo prato naquele dia, não lembro. Depois dos bigodões e dos talheres de ouro, não poderia desperdiçar minha memória com alimentos comezinhos.
O velho Alfredo morreu faz muito. Seus restaurantes se multiplicaram, ganharam o mundo, e se não me engano, até comi em um deles em Nova Iorque. As "fettuccine" certamente são as mesmas em todos os "Alfredo" ou em suas franquias, entraram em linha de montagem. Mas as que minha tia comeu naquele dia, colhidas pelo garfo no fundo cheio de molho, aquelas que lhe encheram o olhar de contentamento, essas ninguém mais faz.