Marina Manda Lembranças T aça importada frequentemente furtada do restaurante Comedoria, no Leblon — Guilherme leporace / Agência O Globo...

Marina Manda Lembranças
O bar elegante importou 300 taças de vidro gravadas como as antigas taças medievais, para agradar os clientes e dar mais grandeza às caipirinhas. De fato, os clientes se sentiram muito agradados. Tanto, que ao longo de seis meses se apoderaram, uma a uma, de 277 delas, lembrancinhas discretamente desviadas para dentro de bolsas ou mochilas. Devemos crer que os clientes consideraram o preço da taça, ou do sumiço da taça, já embutido na conta? Não, não devemos.
No bistrô requintado, com pátio, jardim e excelente café expresso, as xicrinhas são especialmente graciosas, de cerâmica. Ou melhor, eram, porque depois de verem sumir dez xícaras em três meses, os proprietários puseram em uso xícaras mais correntes. Podemos crer que a beleza das xícaras levou os clientes a pensar que fossem um presente? Não, não podemos.
Podemos, isso sim, nos perguntar para que serve uma única taça ou uma xicrinha desparelhada, em casas onde há abundância de taças e xicrinhas. E chegaremos à resposta inevitável: mais do que para tomar um vinho solitário ou um cafezinho em pé na cozinha, o furto serve a si mesmo, ao prazer de apropriar-se do que não nos pertence, sem que a apropriação indébita seja percebida ou, muito menos, castigada. Uma espécie de ressurgir do primitivo instinto da caça.
Na década de 90, a artista paulista Jac Leirner expôs uma obra composta por 100 cinzeiros de avião roubados, ligados por uma corrente. Chamava-se "Corpus Delicti", algo tipo matar a cobra e mostrar o pau. Tenho amigo que desenvolveu uma técnica para colecionar toalhas de hotel. Um tio meu que viajava bastante, ao passar pelo carrinho da arrumadeira ocupada em arrumar algum quarto, surrupiava punhados de sabonetinhos. E lembro que quando jovens adolescentes, nos dias em que por alguma falta de professor não tínhamos aula, o programa dos meninos era sair do colégio, em Laranjeiras e ir até Botafogo, roubar na Sears. Roubar, assim, genérico.
O prazer nasce de vários ninhos — porque prazer certamente há. Pode ser a sensação de independência criada pela transgressão: não me submeto às regras, portanto sou um ser livre. Pode ser o sentido de superioridade: roubei o que era deles e eles nem perceberam, são uns otários e eu, o esperto. Ou de poder: posso me apropriar do que quiser. Ou a alegria de incorporar ao próprio cotidiano um objeto novo, sem ter que pagar por ele. Ou a satisfação por um passe de mágica: passei a mão, botei no bolso, tudo invisível. Mas me recuso a aceitar que a impunidade possa ser um prazer.
No Japão não se roubam xicrinhas de cerâmica nos bares. Será que os japoneses não gostam de prazer? Ou os prazeres dos japoneses são diferentes dos nossos? Naquele país estranho, cumprir o próprio dever e obedecer à lei é um prazer comum a todos.
Uma xicrinha hoje, uma taça amanhã, um cinzeirinho no fim de semana, onde o limite? E como colocar limite em algo que, em sua origem, não é considerado degradante? Quais são os parâmetros que permitem chamar alguém de ladrão?
Parece que só através de juízes, de inquéritos, de delações premiadas, de computadores recolhidos pela polícia. Nas suas próprias famílias, nos seus círculos sociais e profissionais, o grande ladrão é tão respeitado quanto os modestos ladrões de taças e xicrinhas. E talvez não haja mesmo diferença.