Marina Manda Lembranças C onfesso, não sabia quem fosse Fujima Kanjuro até decidir ver sua apresentação - o Japão é distante, por mais...
Marina Manda Lembranças
Nunca vi Kabuki em cena, nem mesmo quando fui ao Japão. Só em documentários, ou alguns fragmentos em filmes, coisa pouca para arte tão complexa. Desta vez também, o que vi não foi exatamente Kabuki mas uma forma simplificada chamada su-odori ( su=simples e odori=dança) defendida pela Escola Fujima. Mais simples nos trajes, nos cenários, não na dança.
Dizemos dança, e o que vemos com nossos olhos ocidentais nos parece coisa diferente, menos corpo, talvez, e mais teatro. Nada daquilo que consideramos expressões de sensualidade, nenhuma interferência dos quadris. O corpo obedece a um rigor domesticado e exato que integra as longas mangas do quimono, as mãos dialogam. Entre um e outro movimento, pausas infinitesimais congelam a composição como nas gravuras dos mestres.
Não era tão rigorosa mas tinha a mesma intensidade de beleza a dança folclórica japonesa que, há muitos anos, foi apresentada só para mim. Com a tarefa de escrever um artigo sobre a vida doméstica no Japão, eu estava hospedada em uma casa de Saitama — localidade rural antiga, hoje cidade-dormitório de Tóquio. Nessa casa havia um pai sempre ausente a trabalho, uma jovem filha, uma mãe e uma avó. Uma certa solidão perpassava a vida da avó. Não tinha tarefas na casa, quase nada por fazer. Eu a via acender os bastões de incenso e trocar a tigela de arroz no altarzinho dos antepassados que mantinha no quarto. E porque os outros pouco ligavam para ela, lhe sorria inclinando-me. Pedi à neta que servisse de intérprete para que pudéssemos minimamente conversar. Soube assim, que frequentava junto com outras senhoras um grupo de danças folclóricas, e que ensaiavam para uma apresentação no Festival de Verão a acontecer no próximo final de semana. Nos dias seguintes, me interessei pelos ensaios, prometi que iria vê-la no Festival. E um dia, através da neta, perguntou se eu gostaria de vê-la dançar, e me fez saber que à noite dançaria para mim .
Entramos as três na sala, ela, a jovem, e eu. A jovem levava o aparelho de som. Ela vestia o belo quimono da apresentação. Fechamos a porta de papel de arroz, sentei-me na esteira. E ali, naquela casa diante de uma plantação de berinjelas, gestos delicados recriaram o ceifar do trigo, as espigas caindo no campo e sendo atadas em feixe, símbolo da abundância e garantia de alimento para o inverno. Era a Dança da Colheita.
Sábado, na Cidade das Artes, o teatro estava cheio, havia muitos japoneses, famílias inteiras. E ao meu encantamento acrescentei o prazer que emanava deles — uma senhora de idade e duas moças nipônicas estavam sentadas ao meu lado. Emigrada que sou, vivenciei sua funda emoção de reencontro, a familiaridade com que viviam aquilo que para o resto do público era tão diferente. Não só compreendiam as palavras dos recitativos modulados — talvez devesse chamá-los canções — como captavam, na música e nos gestos, ricos significados que nos escapavam. Alguns haviam levado crianças, e pensei no esforço de transmissão, semelhante àquele que fez de Fujima Kanjuro o oitavo da sua estirpe.