Marina Manda Lembranças S equestraram o farol da Ilha Rasa! Procuro no horizonte escuro e não o encontro, nem é mais escuro o horizon...
Marina Manda Lembranças
Não era triste para mim, quando vim morar nesta casa. Era um cometa, uma estrela cadente que atravessava minha sala num lampejo marcando a regular pulsação da noite, e que me dizia com sua voz de luz " está tudo bem, nenhum navio esfacelou-se nos rochedos, podemos dormir tranquilos".
Para isso servem os faróis, para indicar a zona de perigo e tranquilizar quem navega, no mar ou na vida.
E servem, ali parados no topo de um rochedo ou de uma mínima ilha, como referência de estabilidade. A paisagem urbana tem mudado constantemente debaixo dos meus olhos, a curva do horizonte, antes livre do Leblon a Copacabana, foi sendo denteada pelos edifícios, uma torre de acesso ao metrô cresceu ao meu lado, passarelas foram estendidas, as calçadas se tornaram estreitas para a quantidade de pedestres. Mas, nos anos, a Rasa e seu farol continuavam iguais, vivendo um outro tempo cercado de mar.
É o mesmo tempo em suspensão que encontro nos muitos quadros de faróis pintados pelo americano Edward Hopper. Como em seu repertório de mulheres - vestidas ou nuas, em ambientes domésticos ou estáticas diante da natureza- algo está parado, os ponteiros dos relógios ou a expectativa imobilizaram-se por instantes, algo está por acontecer e não acontece.
Algo está sempre por acontecer nos faróis. A tempestade, o vento, o navio à deriva. A tragédia espreita o farol, e a função dos espelhos iluminados é evitá-la.
Ainda assim, não vivem perigosamente os faroleiros. Ao contrário, vivem uma rotina precisa, regulada pelo relógio e pelo trânsito do sol, funcionários que são de luzes e engrenagens. E embora sempre os imaginemos sozinhos, esperando a data em que um barco virá trazer-lhes provisões, muitos vivem com suas famílias, alguns criam cabras no magro entorno rochoso e podemos imaginar um cão que late em noites de ventania.
Sempre quis entrar num farol. Não servem as vezes em que os vi em filmes. Um farol de verdade não cabe no enquadramento retangular de uma tela, é todo circular, como um túnel ou um poço erguido. Invejei Rubem Braga que visitou o farol da Rasa e o fez saber numa crônica. Eu, mais modesta, visitei um Farol do Saber. Era a década de 90 em Curitiba, e o então prefeito Rafael Greca me levou para conhecer uma das bibliotecas comunitárias que havia criado, um pequeno farol cheio de livros, com a escada em caracol levando ao topo. "Quero um para mim!" exclamei, e era verdade.
Mas agora o farol que eu tinha ao longe, com quem dialogava na noite, foi sequestrado. Não o tiraram do lugar, que seria impossível. Nem o desativaram. Obliteraram sua luz.
Um farol precisa de espaço para agir, de amplidão que o justifique. E o da Rasa, plantado ao topo da sua ilha, o tinha. Progressivamente, porém, cargueiros à espera de vaga para atracar na baía, começaram a fundear ao largo, mais e mais numerosos. Hoje são tantos, que olhando o horizonte à noite tenho a impressão de estar vendo povoações. E as luzes daquelas falsas povoações se confundem e se sobrepõem ao olho aberto da noite que dardejava seu raio em minha sala.