Marina Manda Lembranças A thing of beauty is a joy for ever , diz um poema de John Keats. E desde que o li, levo esse verso comigo. ...
Marina Manda Lembranças
Eu tinha acabado de fazer uma palestra - prefiro trabalhar diante da mesa, não atrás dela - e, de boca seca, estendi a mão para trás em busca do copo. Esperava o costumeiro copo de plástico com a proteção de alumínio que eu rasgaria, encontrei uma taça já cheia ao lado do copinho aberto. Bebi, surpresa de que uma coisa tão simples me desse tanto prazer. A taça com seu pé gracioso, o jogo de luz da sua transparência, o contato fresco e liso do vidro sobre os lábios, constituiam um pequeno momento de beleza. Tão pobre resultava na bandeja o copo de plástico, que agradeci aos deuses ter sido poupada dele.
Um momento só, como uma bolha de sabão. Mas retê-lo contaminou de graça aquela tarde de trabalho, e o prazer pousado entre meus dedos se reacende agora enquanto o escrevo.
Basta pouco. Adolescente, eu visitava meu pai em sua fazenda de Angra dos Reis, tempo em que ainda não existia a estrada litorânea. A cavalo, visitávamos alguns posseiros, tomávamos café já adoçado em caneca de esmalte, trocávamos amabilidades. Em uma dessas casas havia um fogão que me encantava. De lenha, como todos os outros, feito de barro, como todos os outros, mas ao contrário de todos os outros, claro e de linhas arredondadas quase como um iglu. É que a dona daquela casa, todo dia, depois do almoço, barreava o fogão com água e um barrinho claro, uma espécie de areia que o marido buscava para ela na beira do rio. De tanto passar a mão molhada, como se o acariciasse, o fogão havia perdido as arestas, as quinas. E não guardava traço de fumaça. Havia-se tornado uma escultura.
No início da semana passada estive trabalhando em Ponta Grossa, Paraná. E diante de uma platéia de quase mil professoras — não contei, talvez fossem menos, talvez fossem mais — ouvi a Secretária de Educação, professora Esméria dizer: "Quero que a escola seja bonita! Quero que as salas sejam bonitas! Quero as professoras bonitas! " E disse ainda que era preciso que as crianças gostassem da escola, se sentissem bem nela.
É isso, a beleza faz bem. Desço para passear o cachorro, cato uma flor roxa caída no chão, volto, pouso a flor sobre a mesa diante do meu olhar. E as outras cores esparsas, que antes nem notava, se acendem pela proximidade daquele roxo. Uma pequena revolução cromática acontece sobre a mesa e me convoca. Sou eu que sorrio, ou é a flor roxa?
Acreditamos erroneamente — porque assim nos fizeram acreditar — que luxo e beleza são uma mesma coisa e que, portanto, a beleza é cara. Progressivamente, um apelido de origem francesa foi sobreposto à palavra beleza: grife . Mas grife e beleza não são forçosamente sinônimos. Grife é sinônimo de preço, todos sabem quanto custam esta ou aquela bolsa, este ou aquele tênis. A grife, portanto, não é usada para acrescentar beleza, mas para dizer quanto quem a usa pode — ou está disposto a — gastar.
Beleza pode ser cara, é verdade. Peças de design, arte, antiquariado, algumas jóias — nem toda jóia é bonita —, são caros. Mas há muita beleza barata ou grátis. As mãos do artesão enquanto trabalha podem ser mais bonitas do que o objeto que produzem. Toda renda é um milagre de beleza. E o barro molhado tomando forma de pote. E um gesto, uma folha, uma mecha de cabelos, uma voz. A beleza está em toda parte, oculta ou manifesta, mas quem lhe põe moldura é o olhar de quem a busca.