Marina Manda Lembranças U m homem, agora solitĂĄrio, recebe trĂȘs cartas. SĂŁo de trĂȘs mulheres. As trĂȘs cartas falam dos mesmos fatos, ...
Marina Manda Lembranças
A primeira carta é da filha da amante do homem, que hå pouco morreu. No dia antes da morte, a mãe entregou à filha seu diårio para que o queimasse junto com as folhas secas no jardim. Antes de queimå-lo, a jovem o leu. E assim, tomou conhecimento dessa relação que ignorava, tendo sempre achado que a mãe, hå muitos anos separada do pai, nunca mais havia tido alguém. Uma relação de amor e sofrimento, costurada pelas palavras "pecado"e "pecadora" que percorrem todo o diårio. Uma relação de culpa, pois o amante da mãe é o marido da sua prima mais querida. A filha não consegue imaginar um amor "que não é iluminado pelo sol, e que flui de parte alguma para nenhum lugar, encaixado profundamente na terra, como um rio subterrùneo". E se espanta que durante 13 anos a mãe tenha lhe mentido. Mentiu para ela, mentiu para a prima. Que demÎnio a possuiu?
E conta como, na véspera da morte da mãe, antes de receber o diårio, entrou no quarto e a viu sentada na cama, vestindo um quimono de seda especialmente bonito, que guardava hå muitos anos. A prima entrou então no quarto. A filha saiu.
Agora, ela quer mudar de casa e de cidade.
A segunda carta Ă© da esposa. O tom cortante diz logo de um ressentimento. Ela sempre soube que o marido era amante da sua prima. E nunca o disse. Porque era traĂda, resolveu trair. Relacionou-se com vĂĄrios homens, pintores, artistas, um jockey, sem amar nenhum. Bebeu, jogou durante noites inteiras, deu festas. O marido nunca reclamou, nunca demonstrou-se ofendido, mantinha-se irĂŽnico, como "uma citadela protegida por todos os lados, formidĂĄvel e impossĂvel de conquistar". E, no entanto, ela o amava. Soube do romance com a prima pouco depois de se casar. Tinha vinte anos. De uma janela de um quarto de hotel o viu de pĂ© na praia e, junto dele, vestindo um quimono de seda especialmente bonito, a prima que ela mais admirava.
E conta como, na véspera da morte da prima, foi visitå-la e, encontrando-a sentada na cama vestindo o mesmo quimono daquele dia distante, lhe disse que sabia, que os havia visto na praia, que sempre soube.
Agora ela quer o divorcio.
A terceira carta Ă© da amante. Escreve antes de tomar o veneno que, embora jĂĄ estivesse doente, a matou. Sabe que vai surpreendĂȘ-lo. Relembra aquele dia na praia, e de como ele lhe disse "o amor Ă© uma obsessĂŁo. Por que eu nĂŁo teria o direito de ser obcecado por vocĂȘ? "E depois, deitados na cama," Sejamos pecadores. Mas jĂĄ que o seremos, sejamos grandes pecadores". Essa Ă© a origem das palavras do diĂĄrio. Ela se perguntou ao longo desses 13 anos, se o mais importante era ser amada, ou amar. E porque no inĂcio do casamento seu marido havia feito um filho em outra e ela havia-se sentido obrigada a deixĂĄ-lo, preferiu ser amada. Sem nunca, de maneira tĂŁo funda que nem se dava conta, deixar de amar o marido.
E conta a cena do quarto, quando a prima lhe disse que sabia e, em vez de sentir-se esmagada pela culpa como sempre havia pensado, sentiu-se aliviada.
No romance "Fuzil de caça", do japonĂȘs Yasushi InouĂ©, sĂł do homem nĂŁo sabemos os sentimentos. Aquele que alterou a vida de trĂȘs mulheres, levando uma delas Ă morte, se mantĂȘm calado como uma citadela.