Marina Manda Lembranças A quem pertence nosso corpo? "Estou muito doente — me disse meu amigo de infância. Fez uma pausa e cont...
Marina Manda Lembranças
Um novo remédio contra a depressão acaba de ser anunciado. E com ele, novas descobertas sobre esse mal que durante séculos foi atribuído a um excesso de sensibilidade ou de reflexão sobre o mundo. Nada a ver com sensibilidade ou filosofia, tudo é química cerebral. E agora ficamos sabendo que não só a tristeza , como a falta de impulso para o trabalho ou para tomar decisões, são resultado da des-função dos neurotransmissores. O cérebro, nosso tesouro mais precioso, só pertence a si mesmo, à sua própria química. E dela, nós que não somos médicos nem neurocientistas, sabemos menos do que de receitas de cozinha.
Eu estava na fila de embarque para uma viagem de mais de seis horas. Algo se pôs em movimento no meu corpo. Percebi a mudança, mas não tinha ideia do que fosse. Interroguei o corpo e ele só me deu respostas vagas. Uma dor avançava para o centro do peito. Eu avançava na fila, entrava no ônibus do aeroporto. A dor se fazia mais intensa ao respirar. Passará, pensei, a maioria das dores passa sozinha. Não passava. Entrei no avião, sentei, afivelei o cinto de segurança. Pensei que talvez fosse pleurisia. Já tive pleurisia, conheço os sintomas, e eram parecidos. Mas o corpo me disse que não. Negava as minhas tentativas de diagnóstico, e não me dava outras. O avião levantou vôo, olhei o relógio. A dor aumentava. Pensei que não aguentaria tantas horas. De repente a ideia de que pudesse ser um infarto, voltou. Eu já havia pensado nisso ao entrar no ônibus, mas havia descartado a ideia.
Não conheço a sensação do infarto por dentro, mas conheço o olhar de um infartado. Estive , certa vez, com um homem enquanto ele infartava. Só ele, eu, e um coração em pane. Estávamos em uma garagem onde ele viera trocar a bateria de um carro. E logo, parado à minha frente, sentado numa mureta, o homem avançava para um abismo. Era isso o que os olhos dele me diziam enquanto ele se mantinha calado. Olhavam para um abismo do qual não viam o fundo. E a testa dele suava.
A minha testa também suava e meu pulso estava desatinado, mas a bordo daquele avião ninguém veria olhar de abismo em mim, porque para tentar entender o que me acontecia fechei os olhos.
Sou de um tempo em que na escola se estudava o corpo humano. Impossível esquecer nomes como tricúspide e mitral, ou deixar de saber que o coração é feito de miocárdio e pericárdio. Mas são conhecimentos inúteis se não sabemos como as partes agem e se articulam. Pensei: coração. Não tinha dados para pensar: pericárdio. Fiquei à espera. Nada acontecia além da dor. Passadas duas horas e continuando viva, só me restava suportar. E o fiz.
Agora, em plena recuperação de uma pericardite, humilha-me a falta de intimidade com esse corpo que é só o que temos nos ligando à vida. O arranhão na pele, que dificilmente nos matará, é visível mas não sabemos o que, debaixo dela, se prepara para uma traição ou simplesmente um abandono. Todos os dias acordamos como se acordar fosse gratuito, alguns, à noite, agradecem a Deus. E ao corpo, que faz todo o serviço, quem agradece?