Marina Manda Lembranças O técnico me diz que a obsolescência programada dos equipamentos eletrônicos passou de 10 para 5 anos. Foi co...
Marina Manda Lembranças
E o que fazemos depois de 5 anos com equipamentos que foram caríssimos e que já não servem para coisa alguma? Jogamos fora. Nada podemos aproveitar além dos dados que contêm e que, eles também, correm o risco de sumir. Nos monturos, nos depósitos de e-lixo, serão eventualmente despedaçados, arrancadas suas pobres tripas, derretida sua fiação para a obtenção de metal e a produção de fumaças tóxicas. E os cacos restantes durarão muito mais que 10 anos.
Meu ferro de passar roupa quebrou. Mandei consertar, custou metade do preço de um ferro novo. "Eu não mandava — disse minha funcionária doméstica — Paga a metade agora, daqui a uns meses enguiça outra vez, vai ter que comprar um novo." O conceito de aproveitamento como um dever social inexiste para ela. Não só para ela. Cada vez mais, a única norma válida é jogar fora o que enguiça e comprar um produto novo.
Assisti pela TV à palestra de Leandro Karnal no Café Filosófico. Era sobre vaidade, mas o historiador deteve-se sobre este nosso momento de descarte. O amigo que já não parece tão interessante, o vestido que saiu de moda, a relação um pouquinho gasta jogam-se fora, substituem-se por outras mais novas, momentaneamente mais vibrantes. Com isso, nada se aprofunda, a vida torna-se uma grande onda a surfar.
Penso nos objetos. Desejar alguma coisa era bom, no tempo em que o desejo não era atropelado por rápidas mudanças de moda e, consequentemente, de desejo. Passar várias vezes diante da vitrine, examinar detidamente, procurar em nossa vida o exato lugar daquele objeto, contar e recontar o dinheiro, eram formas de dar progressiva concretude ao desejo e de valorizar o objeto, antes mesmo de possuí-lo.
Depois, nossa alegria com a posse de coisa tão longamente escolhida imantava o objeto, como se lhe deitássemos em cima camadas invisíveis de bem querer, transferindo para o objeto a nossa satisfação. Era isso que o fazia nosso e o diferenciava de outros por que passávamos ou que pertenciam a outras pessoas. Uma relação se estabelecia entre nós e os objetos que compunham nosso cotidiano.
Mas aquilo que não deve durar, que breve acabará no lixo, não merece nenhum investimento, muito menos qualquer tipo de transferência sentimental que lhe dê vida e o torne parte de nós. O que não seguirá caminho conosco serve apenas para nos servir. E quando quebra ou enguiça ou passa de moda não é sentimento de perda o que sentimos, mas uma quase alegria na previsão do novo objeto que compraremos para substituí-lo.
Louvamos esse sentimento chamado-o desapego. Mas não pareceria tão belo se lhe déssemos seu verdadeiro nome: desamor. Desapego não é jogar fora o que já não usamos, é viver com menos, deixar de comprar aquilo que pouco usaremos. Desapego está ligado a uma vida mais frugal, menos ostentatória, justamente aquela que em tempos de grifes ninguém quer. Já desamor é usar sem gratidão, como se tudo nos fosse devido, gastar e substituir objetos anódinos porque é nosso direito, nosso quase dever de consumidores.
Perdemos, com isso, o diálogo com os objetos. A caixinha que havia sido da avó, o cabo da nossa faca favorita, a caneta cuja pena cedia à nossa caligrafia conversavam conosco coisas do passado e do presente, que só a nós diziam respeito. Os objetos descartáveis que compramos sem refletir e que jogamos fora sem mágoa nada têm a nos dizer. E o cotidiano abre lacunas de solidão.